segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

A paixão pelo Real : o Realismo e a Realidade


“….a dialéctica da aparência e do Real não pode ser reduzida ao mecanismo bastante elementar pelo qual o carácter cada vez mais virtual do nosso quotidiano ( essa vida sentida como que desenrolando-se cada vez mais no quadro de um universo artificialmente construído) implicaria a necessidade irresistível de uma “ ressurgência do Real”, de uma ancoragem firme numa qualquer “realidade real”.O Real que regressa tem o estatuto de uma (outra) aparência: é precisamente por ele ser real, é precisamente devido ao seu carácter traumático e excessivo, que somos incapazes de integrá-lo naquilo que apreendemos como sendo a nossa realidade, sendo portanto forçados a experimentá-lo como uma aparição de pesadelo.” 1


Abordagem sintética da obra de Gustave Courbet (1819-1877) à luz de uma historicidade artística e perante as novas questões da contemporaneidade.


Quando inaugurou em 1855 a sua exposição num barracão simples em Paris, Gustave Courbet não teve consciência que estava a ser actor da História da Arte. Intitulou-a “Le Réalisme, G. Courbet” ; o próprio facto desta exposição decorrer em paralelo à grande Exposição Universal de 55 onde estavam expostos todos os pintores consagrados do seu tempo, foi à partida um acto provocatório. A Revolução na Arte tinha-se iniciado.
Courbet assumiu-se como homem e artista do seu tempo , como activista político, com a capacidade e o poder individual de pintar qualquer tema .Buscava a verdade, a realidade tal qual ela se lhe aparecia. A realidade simples e pueril, sem artifícios e rotineira, sofredora e real. Uma realidade sem formosura, sem poses graciosas e linhas fluentes; uma realidade de cor, uma realidade por vezes também sem cor.
O choque foi total e a afronta imensa. Os artistas do sistema e da norma académica sentiram-se ultrajados.
Courbet tinha conseguido: o protesto estava feito, o golpe ao sistema e às convenções artísticas estava desferido. O verdadeiro artista fiel aos seus princípios morais e artísticos tinha então nascido. Transformou-se numa das personalidades mais poderosas do sec. XIX.

“Espero sempre ganhar a vida com a minha arte, sem me desviar um milímetro dos meus princípios, sem nunca ter mentido à minha consciência, sem pintar sequer algo que caiba na palma da mão apenas para agradar a alguém ou para vender mais facilmente”

O Realismo tinha nascido, provocatório e político. A representação mimética da Natureza transformava o artista em seu discípulo. A representação clássica e académica tinha ficado nos antípodas. A Academia sentia-se chocada pela banalidade chocante dos quadros de Courbet; mas não será a realidade, ela sim banal e por isso chocante? Não será a realidade de uma banalidade chocante?

Courbet trouxe para o espaço pictórico uma dimensão da vida que nunca nele estivera representado. Entrava-se assim noutra dimensão da arte, numa dimensão real, numa realidade real agora transposta para o universo da representação pictórica.

Um verdadeiro pintor do seu tempo

A realidade romântica desvanecia-se, e o realismo, assim como o pensou Courbet, assumia-se como novo conceito e movimento.
A adesão dos artistas a uma realidade que se quer sempre objectiva, vem de longe. Desde Altamira e Lascaux que a representação da Natureza é tentada tão fielmente quanto possível numa atitude mimética que por vezes transcende o ser humano. O mesmo aconteceu nas expressões realistas das esculturas egípcias da primeira dinastia. Na Flandres renascentista o realismo deu mais uns passos com Van Eyck. 2
O realismo francês, o de Courbet, foi realmente inovador por se assumir como pintura social, como pintura de intervenção em defesa das classes mais desfavorecidas contra uma burguesia que tinha assumido o poder após a Revolução de 1789.
Courbet assumia-se como interventor social, como socialista e a sua obra reflecte o amplo enquadramento social que a sua vida sempre teve: anticlerical, antiacadémico e antiburguês. Na tradição bem francesa do artista e intelectual engagé, Courbet assumiu esse estatuto na plenitude.
A nova dimensão de Courbet é reflexo de uma época de procura, onde as grandes questões que iriam marcar a modernidade e contemporaneidade até aos nossos dias foram pela primeira vez despoletadas.
Cada pintor assumia-se na tentativa de procurar estilos próprios e novos caminhos.
Courbet era um defensor da realidade objectiva, sem se aperceber que o seu compromisso politico pessoal o afastava de uma linearidade objectiva e sintética.
Além disso Courbet não se conseguiu abstrair de uma poesia latente que transmitiu nas suas telas imensas. O seu sentimento poético retirava realidade ao seu realismo, transformando-o sempre na sua visão, sempre contaminada pelo “sistema de crenças” ( no seu caso fortíssimo).
E Courbet assumiu-se como pintor de uma realidade que o circundava; assumiu-se com o poder de tudo pintar. E quase tudo pintou: paisagens, caça, natureza morta, motivos sociais, nus e pintou-se a ele próprio numa produção imensa que fizeram dos seus auto-retratos verdadeiros testemunhos da sua vida.
Também aqui a provocação era o mote na sua abordagem artística .

A invenção de Courbet
Os auto-retratos multifacetados

Os auto-retratos de Gustave Courbet sempre foram considerados com muita prudência e parcimónia pelos críticos e historiadores de arte.
Entre 1842 e 1855 Coubet representou-se em mais de uma vintena de auto retratos.
Analisados inicialmente como fruto de uma instabilidade estética e psicológica e de um grande narcisismo, hoje esses auto-retratos, e toda a obra de Courbet, começam a ser reanalisados à luz de grandes questões da nossa contemporaneidade.
Será que podemos dizer que Courbet tinha uma paixão pelo Real ou pela aparência? Somos forçados a regressar àquela ideia de Lacan segundo a qual, se os animais podem iludir apresentando o que é falso como verdadeiro, só os homens ( entidades habitando o espaço simbólico) podem iludir apresentando como falso o que é verdadeiro. 3
Gustave Courbet sempre foi um consumidor de imagens: visitava todas as exposições, todos os museus, viajava, era ávido de conhecimento pictórico. A sua formação artística, apesar de não académica, era muito completa, demonstrando um conhecimento do passado artístico e da herança pictórica que lhe deram uma confiança e segurança imensas. A sua principal influência foram os naturalistas do sec. XVII como Caravaggio e Velásquez .
Podemos dizer que Courbet foi o primeiro a pensar a imagem como reflexo de si, como espelho de pensamento e raciocínio.
Sabemos hoje, mais do que nunca, que a nossa estrutura de pensamento é realizada recorrendo a imagens perceptivas, uma vez que o pensamento é algo iminentemente visual. 4 Courbet talvez tenha sido dos primeiros a sentir e transmitir isso.
Nos seus auto-retratos Courbet mascarava-se e assumia personagens que encarnavam a sua personalidade instável associada a imagens referenciais de um passado romântico recente.
Sao exemplos disso “Auto portrait au chien noir” e o “Portrait de l´artiste dit l´homme blessé ». Aqui Courbet assume um diálogo extraordinário com toda uma tradição pictórica numa ebulição estética que lhe garantiu uma coerência refundada no exemplo.
Se bem que a maioria dos auto-retratos foram realizados na primeira fase da sua carreira, Courbet nunca a ele renunciou, fazendo-se representar em inúmeras telas de maneira indirecta ou secundária; ele estava presente nas paisagens magníficas que nos ofereceu e nos nus provocatórios que ainda hoje podem chocar.
As várias máscaras de Courbet não poderão ser o testemunho de várias personalidades a tentarem sobressair, a tentarem-se evidenciar, numa atitude quase esquizofrénica? Realidade? Realismo? Aparência?

Não será a realidade a melhor aparência de si mesma?

Podemos então, considerar também a interpretação dos auto-retratos de Courbert como uma espécie de rito iniciático à semelhança do que outros pintores fizeram; uma única razão para tentar explicar a quantidade e razão de tantos auto-retratos será desproporcionada e um conjunto de muitas, talvez seja a aproximação mais justa esta questão.
A associação das atitudes e máscaras que Courbet assumiu nos seus auto-retratos ajudaram-no a criar uma imagem metamórfica junto da opinião pública, facto completamente novo. Courbet soube gerir esse facto muito bem num exercício de uma dimensão inédita e foi o primeiro a tirar disso proveito, sabendo da apetência do público pelas imagens, pela inovação e sobretudo pela controvérsia

« Quand je ne serai plus contesté, je ne serai plus important »

São famosos pela identificação que lhe proporcionaram a barba assíria e a sua pose em o “ Le Violoncelliste, 1847” , a sua atitude de bebedor de cerveja e fumador de cachimbo e sobretudo o extraordinário e magnifico “Portrait de l´artist, dit Le desespere,1844-1854”, a verdadeira expressão realista do criador atormentado, incompreendido e solitário.
Toda esta profusão de máscaras e personagens contribuíram para a abundante presença de Courbet nos jornais da época nomeadamente ao nível das caricaturas, meio de crítica sarcástico comum na época.
A sua postura como artista é assim associada às múltiplas poses que assumiu nos auto- retratos, numa atitude de indiferença face ao olhar e ás criticas dos outros, que simboliza a sua verdadeira liberdade de criador.
As personagens que assume são associadas sempre a um passado de uma cultura literária e a uma herança cultural pictórica dando-lhe de alguma forma uma certa credibilidade mesmo que só assumida muito mais tarde.
O difícil equilíbrio instável desta tensão quase esquizofrénica iria marcar toda a sua vida pessoal e artística.
Ao se retratar transvesticamente o personagem Courbet substitui-se ao pintor Courbet, numa espécie de antecipação a uma realidade e a uma polémica contemporânea : a ausência da realidade para planos pictóricos e estruturas virtuais num processo de desaparecimento gradual do conceito de realidade e real numa substituição estrutural por novos planos ou seja o aparecimento da nova realidade virtual.
Com Courbet o Real tinha começado a deixar de existir, paradoxo conceptual com o facto de ele ser associado a um movimento que tentou transpor para o espaço pictórico a própria realidade.
Podemos considerar que foi esse mesmo processo, inovador em Courbet, de transporte da realidade para o espaço pictórico, que iniciou a retirada de essência da realidade, subtraindo dela a substância, que lhe permitia ser a “material realidade real”.


Será que o Real existe mesmo?


O extremo conceptual desta questão é magnificamente simbolizado no filme Matrix (1999) dos irmãos Wachowski, onde esta lógica atinge o seu clímax: a realidade real que nos passa pelos nossos sentidos não é mais que uma realidade virtual gerada pelo “grande computador” . Ao despertar para a verdadeira realidade o herói apenas vê ruínas e destruição. Ao ser acolhido nesta realidade real, Morpheus, o chefe da resistência, reserva-lhe a saudação que marcou e marca as gerações que já hoje vivem na abstracção do Real:

“ Bem vindo ao deserto do real”


Destino do realismo. O poder das imagens


Charles Baudelaire, grande anunciador dos tempos modernos, já tinha dado o mote:

Glorifier le culte des images ( ma grande, mon unique, ma primitive passion)”

A procura durante o séc. XIX de um meio de reprodução exacta das imagens foi uma necessidade e uma exigência: a Ciência estava já pronta para fornecer descoberta da fotografia mas o século em geral e a arte em particular já há muito que estavam prontos para a receber.
O texto começa a ceder espaço para a imagem. A fotografia e a impressão, a imagem e o livro; esta dupla oposição retrata a evolução da nossa cultura. O lisivel e o visível.
É com o sec. XIX que se inicia o fim da civilização do livro e em parte, do raciocínio estruturado só em frases. A velocidade apanhou o homem moderno e impôs-lhe a necessidade de pensar mais depressa. A sensação e a resposta da impressão da imagem no cérebro são instintivas e a sua percepção imediata e simultânea.
Podemos dizer que o signo suplantou o verbo, ultrapassando as palavras, pela imagem.
Estamos perante o império da imagem em que a memória visual é condição de sobrevivência.
Este processo teve origem no sec. XIX e Gustave Courbet em muito contribuiu para o seu desenvolvimento. Assumindo-se como realista e como pintor da realidade, a pintura de Courbet não deixa de traduzir a poesia das suas emoções em imagens. Toda a criação por mãos humanas aplica uma certa concepção de beleza e exprime uma certa presença psicológica, não sendo nunca neutra, nem plenamente plástica, nem plenamente realista.
E foi assim que o realismo, à força de se suplantar como representação total, deu pistas para as futuras livres interpretações do real, dependentes de cada personalidade e de cada sensibilidade. Estava aberto o caminho para o impressionismo.


Referencias Bibliográficas:

1 ZIZEK, SLAVOJ (2002) : Bem-Vindo ao deserto do Real. Lisboa. Relógio de Água.
2 DE CASTRO, FERREIRA (1972) : “As maravilhas artísticas do mundo” in Obras Completas. Lisboa. Guimarães Editores
3 LACAN, JACQUES (1966) : Écrits. Paris. Le Seuil
4 ARNHEIM, RUDOLF (1986): New Essays on the Psychology of Art. Bekerley.UCP














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