segunda-feira, 15 de junho de 2009

YVES KLEIN, O MONOCROMO










1 Resumo
A obra do francês Yves Klein ultrapassa claramente o estrito campo da pintura e acaba por ser por ela própria contributo para a definição do conceito sistémico de arte moderna por todas as dimensões críticas que levanta. Yves Klein é um artista maior da segunda metade do século XX com uma fulgurante e produtiva carreira, interrompida por uma morte precoce aos 34 anos.
Os monocromos de Klein são a essência da definição da própria arte moderna na medida em que reabrem fronteiras de discussão por territórios ainda e sempre por explorar.
Este trabalho propõe-se a fazer uma abordagem sintética sobre a obra de Klein e sobre as questões conceptuais que ela ainda hoje coloca, na sempre e contemporânea questão do que é ou não arte.


« Le contenu immanent des oeuvres, leurs matériaux, et ses mouvements, sont fondamentalement différents du contenu en tant que détachable de l´intrigue d´une pièce de théâtre ou du sujet d´un tableau, tels que Hegel, en toute innocence. Les identifie (…) Le contenu d´un tableau n´est pas seulement ce qu´il représente, mais tout ce qu´il contient d´éléments de couleur, de structures, des rapports ; le contenu d´une musique, par exemple, est - selon Schönberg – l´histoire d´un thème. L´objet ( représenté) peut aussi compter comme élément, de même en littérature, l´action ou l´histoire narrée ; mais ne compte pas moins tout ce qui se passe dans l´ouvre, ce par quoi elle s´organise, ce par quoi elle se modifie » 1







Yves Klein, IKB 48, 1958


2 Arte por definição

« Les tableaux ne sont que les cendres de mon art »
Yves Klein

As propostas de Yves Klein introduzem na discussão da história da arte moderna duas questões que, apesar de não ter sido o primeiro a colocá-las e a abordá-las através da sua obra (e da sua vida) conseguiu reintroduzi-las a um tempo mais mediatizado em que as questões teóricas e conceptuais tinham já saído dos pequenos círculos de teóricos e críticos de arte.
A primeira questão é o duplo estatuto da produção individual e da produção industrial e da subjacente questão da originalidade e do original. É referência obrigatória nesta problemática o texto de 1936 de Walter Benjamin “ A obra de arte na época da sua reprodução mecânica.”3. Neste texto é abordada pela primeira vez esta questão que ainda hoje inunda de cepticismo muita da recepção aos monocromos e da abstracção dita radical. Rosalind Krauss explora de maneira conceptual todas estas questões no seu texto “ A originalidade da vanguarda” 2.
A dimensão espiritual e expressiva de uma obra de arte introduz-nos a segunda questão para que as propostas de Yves Klein nos transportam. A expressão de algo de humano e como tal de sensibilidade elevada, é objectiva em Klein. A insignificação aparente e a subsequente significação objectiva vem da relação entre sujeito e objecto e por outro lado entre a forma e conteúdo. Estamos perante o que Klein definiu como “ sensibilité pictural”4
Considero que esta “subjectividade não emotiva” é o garante à continuidade da própria arte enquanto conceito perseguido quer pelo artista quer pelo espectador receptor.
A aparência estática só pode ser compreendida na medida da sua significação, significação esta que é a impregnação óbvia do espírito no espaço pictórico.

“ C´est par imprégnation de la sensibilité de l´homme dans l´espace que se fera la véritable conquête de cet espace tant convoité »
Yves Klein


Podemos, é certo, referirmo-nos e posicionarmo-nos no paradigma geral das expressões artísticas enquanto modeladoras de um conteúdo temático mais ou menos perceptível
mas teremos sempre que regressar à discussão articulatória dessa mesma forma e conteúdo. Considero que a espiritualidade e a sensibilidade da recepção fazem parte do conteúdo temático da obra, o que posiciona os monocromos de Klein no patamar de libertação dos arquétipos arbitrais e ditatoriais da representação.
A certeza da presença ou não de uma obra de arte é assim ultrapassada pela postura de artistas como Yves Klein: a assumpção da obra de arte como um todo, a obra de arte como atitude de vida, a vida como obra de arte.

Indirectamente Klein responde-nos ao dilema criativo do que fazer quando tudo está já feito.






Yves Klein, RE 21, 1960

Yves Klein, ANT 154, 1960

3 Yves Klein, criador de mitos


« Un peintre doit peindre un seul chef-d´oeuvre : lui-même »
Yves Klein


Klein afirmou que a sua forma de existência seria o acontecimento artístico por excelência. A sua estratégia comunicacional era propagandística qb o que criou condições para o surgimento de um explícito mito pessoal. Nas sua exposições aparecia normalmente disfarçado de cavaleiro contribuindo também para o estabelecimento de uma corrente mítica superlativada pelos nomes das exposições e dos hapenings em que participava: “ Apoteose de Yves, o Monocromo, Yves, o proprietário da cor, Yves o campeão da cor, Yves, o conquistador do vazio, etc.…”.
Yves Klein instalou-se assim num cenário de arquétipos bem antes do reconhecimento em cenário de expressão artística.
Gaston Bacherlard afirmou que os sonhos transportam o sonhador para fora do mundo imediato para um mundo que tem a marca do infinito 5.
Este cenário que foi muito mais do que um sonho, foi uma estratégia premeditada com objectivos claros ( e que foram plenamente conseguidos). A sua morte prematura acabou por exponenciar o factor arquétipo do mito Yves Klein.
Os seus escritos acabaram por contribuir para a construção desta imagem mítica do personagem Yves Klein. Mais do que uma atitude Dada a atitude artística e de vida de Klein adquire foros místicos. Os múltiplos códigos que propagandeava acabavam por servir de protecção individual para uma pretensa insegurança e timidez. O seu discurso podia ser na forma Dada mas expressava algo de muito diferente.

« Seigneur, dit le jeune homme, il vous serait préférable de demeurer immobile, car rien ni personne au monde ne m´arrêtera »
Chrétien de Troyes, Perceval


A sua transfiguração permanente é testemunho de uma intenção de traduzir o seu objectivo simbólico de vida enquanto obra de arte e ao mesmo tempo introduzir o misticismo simbólico.

Escreveu: “ Transfigurar-se é pensar em cada momento na essência central da pureza da santidade, a respiração faz o resto, ou seja, expande pelo corpo uma nova vida que entra por cada átomo em separado e reage cada partícula infinitesimal passando do corpo ordinário a um corpo transfigurado.”

4 A procura do Monocromo Azul


« Fuis du plus loin de la pointe assassine,
l´esprit cruel et le rire impure
Qui font pleurer les yeux d´azur »
Paul Verlaine, Art Poétique


Da análise da obra e da vida de Yves Klein podemos afirmar que ele não é nem um artista abstracto nem um pintor figurativo. Onde se encaixa então Klein no meio dos ismos da historicidade da arte?
Ao olharmos os monocromos de Klein sentimos a vibração energética e a sensibilidade primordial que transmite ao espaço em redor.
O azul ultramarino descoberto e patenteado por Klein, o International Klein Blue (IKB) flui em todas as direcções e suspende-nos o fôlego. O azul propaga-se a cada radiação e colora os sentidos numa espécie de sopro vital embriagante. É a vida na sua essência, na sua grandiosidade, é a obra de arte na sua génese.
Em 1951, Robert Rauchemberg tinha inaugurado uma exposição de quadros brancos. Yves Klein considerou este acontecimento como um marco na História da Arte. Podemos considerar que este acontecimento acabou por o marcar pois mostrou-lhe que “o caminho que trilhava estava certo” e que a imaterialidade que sempre defendia era uma conceito forte e sustentável. Escreveu em 1957: “ (…) só transportados pela imaginação alcançaremos o espaço imaterial da própria vida”.
Já Rodchenko em 1921 quando expôs os seus quadros de cores puras, naquela que foi a primeira exposição de monocromos da História, pretendeu conduzir a pintura à sua “conclusão lógica” isto é, reduzindo a forma ao mais simples e criando um paradigma conceptual de redução absoluta. Rodchenko afirmou em 1939: “ Reduzi a pintura à sua conclusão lógica expondo três telas; uma vermelha, outra azul, e outra amarela. (…) Cores primárias. Cada plano é um plano e não haverá mais representação”6
A redução niilista da “estrutura dedutiva” ( Krauss, 2004) 7 poderia fazer pensar que a pintura tinha sido resolvida de per si.

Eram necessários mais esclarecimentos.

Yves Klein é um artista que, obviamente e desde o inicio esteve afastado da monocromia académica da História da arte.

« Patience, patience,
Patience dans l´azur ! »
Paul Valérie, Palme


O seu azul impressionante ( IKB) de força e variedade, a idiossincrasia da sua utilização constante fizeram a sua imagem de marca. O IKB consegue fazer regressar ao espaço pictórico o indefinível de Delacroix, a substância poética que tão afastada andava da pintura nessa segunda metade do sec. XX. Klein transforma-se assim em poeta do azul.
O monocromo de Klein transforma-se em comprometimento com a vida numa espiral de sensibilidade pictórica nunca antes atingida. A essência do seu trabalho acaba por ser uma das explorações mais complexas e potentes do monocromo em toda a História da arte.

A experiência estética dos monocromos azuis e dos seus inevitáveis desdobramentos foi muito para além da produção repetitiva e criou uma espécie de pensamento e sensibilidade monocromática. Com os monocromos azuis a matéria impalpável é libertada em fluxos de sensibilidade constante e por vezes perturbadora.
Cor pura. Klein sublinhava muitas vezes a sua paixão enquanto artista na tentativa de libertar a cor da linha. Dizia: “ Je suis contre la ligne et toutes ses conséquences: contours, formes, composition. Tous les tableaux, quels qu´ils soient, figuratifs ou abstraits me font l´effet d´être des fenêtres de prison dont les lignes, précisément, seraient les barreaux ».


5 Visível e invisível, do condicionamento da arte à dúvida do vazio

« Je suis l´amant
J´ai des ailles
Je t´apprendrai à voler »
Max Jacob

A recusa do seu primeiro monocromo no Salão de 1946 dedicado à arte abstracta não fez Yves Klein perder a confiança. Disse em reacção: “Mon tableau représente une idée d´unité absolue dans une parfaite sérénité : idée abstraite représentée de façon abstraite, parfaitement en accord avec vos Statuts. »
Após a recusa, a consagração alternativa só teria de esperar pela primeira exposição pessoal “ Yves peintures”, um pouco à maneira do percurso de Courbet.
Catálogo de luxo, linhas em vez de parágrafos e cores em vez de quadros. Esta ausência implicará o falso? Ou o verdadeiro implicará uma presença, ainda que efémera?
Farsa ou obra de arte?
Esta atitude propõe definitivamente a simulação completa do pensamento monocromo, numa aspiração dialéctica sempre condicionada por uma cultivação da sensibilidade, origem de toda a vida, de toda a arte. A cor é-nos assim imposta como matéria impalpável.
Em termos de ideário, o monocromo azul de Yves Klein apenas é a introdução de uma revolução azul. Uma verdadeira revolução cósmica onde emerge uma realização pessoal verdadeiramente impressionante: orquestração e discursos do vazio, antropometrias, cosmogonias, utilização de lança chamas na criação artística, venda de zonas de sensibilidade imaterial, em uma espiral de happenings, arte conceptual minimal e performance que fizeram de Klein um personagem que encarnou a obra de arte em termos de conceitos global de vida e sobretudo de atitude individual.
Mais do que um pensamento monocromo estava-se perante a revolução IKB.
As acções grandiosas e espectaculares que caracterizaram o percurso de Klein nos últimos anos acabaram por influenciar as muitas vertentes artísticas do ultimo quartel do século XX.
A imagem de habitante do vazio é sublinhada por performances como a assinatura no céu de Nice e o salto no vazio. Este imaginário espacial de conquista do vazio ( não do nada) contribuiu para toda a modelação poética de Klein e de toda a sua obra.
Esta conquista do espaço vazio assume contornos líricos mesmo quando assume características de incerteza conceptual. Sobrevivência? Irreverência consciente?
A aventura monocromática é um reflexo extremo da sensibilidade, interpretada como origem civilizacional. Esta atitude sensível e espiritual transposta do exemplo de vida de Delacroix, faz deste pintor romântico a referencia maior no âmbito da pintura para Klein. É este estado e capacidade de ser pintor que encarna de Delacroix que também lhe permite recusar linearmente a colagem ao tão actual expressionismo abstracto americano.
Após uma breve estadia nos Estados Unidos assume a diferença no pressuposto da sua falta de substrato expressivo de interacção com a realidade ( sobretudo a politica). Klein assume a arte pela arte, enquanto actividade pura e resolúvel intra muros.
Impôe-se o regresso ao mestre Gaston Bacherlard :”A imaginação é o veículo da sensibilidade! Transportados pela imaginação efectiva, atinge-se a vida, ela mesma a obra de arte em si” 5


6 Le Dépassement de la problématique de l´art

« Je vais dévoiler tous les mystères : mystères religieux ou naturels, mort, naissance, avenir, passé, cosmogonie, néant.
Je suis maître en fantasmagories .
Arthur Rimbaud, Une Saison en enfer



O facto de que o IKB seja ou não propriedade de Yves Klein não é importante. Importante foi a objectividade da sua patente na prossecução de um objectivo num processo ele sim subjectivo de apropriação.
A interpretação da arte dos monocromos de Yves Klein é muito mais do que tentar decifrar simbolismos escondidos e de obedecer aos arquétipos de análise: perante a sensibilidade empolgante da cor qualquer interpretação será efémera perante a universalidade e sobretudo a eternidade da proposta.

« La connaissance ne possède complètement aucun de ses objets. Elle ne doit pas susciter le fantasme d´un tout. Ainsi, la tâche d´une interprétation philosophique des œuvres d´art ne peut pas produire leur identité au moyen du concept, les absorber en lui ; l´œuvre se déploie cependant dans sa vérité à travers interprétation. (…) En principe, ( interprétation philosophique) peut toujours faire fausse route ; et seulement pour cette raison gagner quelque chose»9
Mas no momento em que o seu azul triunfa, Yves Klein sonha em algo mais, algo que ultrapasse a própria problemática da arte. A projecção no invisível e no vazio projecta a pintura e a arte por caminhos nunca antes percorridos. A cor é substituída por vazio e o corpo assume-se como acto pictórico em possibilidades de performance de liberdade total. Evolução ou revolução?
As antropometrias de Klein estão entre as obras de maior afectividade pictórica até hoje produzidas. Fica assim resolvido o problema da distância na pintura, assumindo a carne o papel de pincel vivo teleguiado pelas indicações precisas de Klein: a substância pictórica viva.
A inscrição final é feita no lugar criador do desejo a uma só cor: IKB
O mote estava dado. As portas da percepção preparavam-se para fechar. A marca do Noveau Realisme é assim definida e extrapolada em termos teóricos: homem, corpo e realidade num chamamento à arte, da sensibilidade e do senso comum.



8 Notas e referencias bibliográficas


1 ADORNO, THEODOR W. (2006) : « Théorie esthétique », pp 493-494
2 KRAUSS, ROSALIND (1985): The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. New York . MYT
2 TERENAS,CARLOS (2007) : http://carter-carter-carter.blogspot.com/2007/12/originalidade-da-vanguarda.html
3 BENJAMIN, WALTER (1936) : « L´oeuvre d´art à l`époque de sa reproduction mécanisée », in Écrits Français (1991) .Paris. Gallimard
4 Optei aqui pelo original em francês já que a tradução para português iria introduzir novas questões teórica não relevantes para o trabalho ( picturale / pictural/ pictórica)
5 BACHERLARD, GASTON (1969): «The poetics of Space », p.183 .Boston. Beacon
6 MOSZYNSKA, ANNA. (1997): « Purity and Belief: The lure of abstraction » in The Age of Modernism: Art in the Twentieth century, p204, Berlin, VGH & Zeitgeist
8Y.A. BOIS, B. BUCHLOH, H. FOSTER, R. KRAUSS. (2004)“Art Since 1900 modernism antimodernism postmodernism”. London. Thames Hudson.
9 ADORNO, THEODOR W. (2006) : « Dialectique négative », pp. 146