quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O Espaço pictórico como imagem espacial do “novo” mundo

(..) la perspective est la forme symbolique d´un monde d´où Dieu se serait absenté, et qui devient un monde cartésien, celui de la matière infinie.Les lignes de fuite d´une perspective sont parallèles et se rejoignent dans l´infini, le pont de fuite est donc à l´infini.Panofski estime que la perspective est la forme symbolique d´un univers déthéologisé , où l´infini n´est plus seulement en Dieu, mais réalisé dans la matière en acte sur terre. 1

Recensão crítica do texto “Nascimento de um Espaço – Mitos e geometria no Quattrocento” de Pierre Francastel 2


Ao analisar este extraordinário texto somos transportados a uma parte essencial da História da civilização ocidental, o Renascimento , verdadeiro despertar de valores adormecidos e esquecidos durante quase um milénio.
Resumir o Quattrocento à invenção da perspectiva e elevá-la como único valor objectivo e permanente deste período é a mensagem que Pierre Francastel (PF) nos tenta transmitir.
PF assume assim muito claramente a defesa de um período riquíssimo da nossa História como um todo em que a invenção da perspectiva se assume como técnica simbólica e demonstrativa de uma evolução societária .
O Espaço pictórico é testemunho do triunfo de um Humanismo que brotava das cinzas de uma Idade Média terminal e agonizante.
Hubert Damish disse que a perspectiva não se limitava a mostrar mas a pensar um novo mundo.
As obras de pintura passam definitivamente a ser sistema de signos com significados e significantes demonstrativos de uma época . “ Uma obra de arte é um meio de expressão e de comunicação (…) “
Pela primeira vez na História estávamos perante um movimento que se reconhecia num espaço e num tempo, com perfeita consciência de si próprio.
O Espaço pictórico torna-se assim símbolo e pela primeira vez signo, sujeito a leis e regras de expressão plástica, que conduzem à demonstração do desabrochar de uma sociedade e civilização.

A perspectiva foi inventada em Florença entre 1420 e 1450. Foi um grupo de homens visionários, que após séculos de erro, desenvolveram uma forma de expressão plástica que correspondia ao primeiro estádio superior de uma evolução civilizacional.
A perspectiva assume assim uma dimensão simbólica que serve de base a toda e qualquer interpretação da História e da civilização modernas.
Pela primeira vez a expressão plástica estava relacionada com a expressão literária num caminho conjunto que não mais iriam abandonar até aos nossos dias. Petrarca e seu discípulo Boccacio foram veículos de um humanismo crescente que concentrava no Homem todas as preocupações da Humanidade em completa oposição ao pensamento medieval.
O fim da Idade Média era uma realidade e doravante as referencias artísticas, culturais e civilizacionais passaram a ser as de um passado clássico , abruptamente destruído por vagas sucessivas de horror que conduziu a um período de trevas de quase mil anos.
O sistema de representação espacial foi apenas a forma como um grupo de artistas transportou para a arquitectura e pintura o saber acumulado e a imagem de um mundo em mudança.
Desde o sistema de poder e politico com as suas relações nem sempre claras até à nova imagem de um mundo que deixava de ter um centro e de ser finito, esta nova representação assume assim dimensões simbólicas bem maiores do que à partida mesmo se poderia ter pensado.
As novas relações sociais emergiam também nas novas formas de representação na nova forma de descrever o mundo, que se dava lentamente a conhecer.
Podemos considerar assim a perspectiva como Erwin Panofsky a considerou, uma forma simbólica? 3
Considero que a História cultural negligencia muita da produção artística em termos de texto e imagens, produção que por vezes serve de base e reequaciona novas dimensões na explicação histórica.
Este movimento de interpretação individual da obra de arte enquanto testemunho do pensamento e da civilização humana é característico dos “ Formalistas Russos” e do Movimento Norte-Americano “ New Criticism”.
A individualização para análise da perspectiva enquanto estrutura assume importância não só formal e académica mas enquanto expressão de novos horizontes e novos olhares.
A nova questão espacial foi colocada e resolvida por Brunelleshi ao terminar a cúpula da catedral de Florença. A partir daqui, tinha-se entrado numa outra época, uma época que inventou e desenvolveu métodos e capacidades representativas que durante séculos satisfizeram as necessidades de toda uma civilização, a ocidental.
A cúpula de Santa Maria del Fiore é o expoente estético baseado pela primeira vez em soluções matemáticas. Estamos perante uma novo processo e um novo sistema.
Este novo processo encarava o espaço como um conjunto de linhas e planos que envolvia o espaço.
O espaço passa a ser envolvido e a envolver através da construção de proporções harmoniosas em função da distância do observador.
Uma nova Era aparecia lentamente, como aparecem todos os movimentos de transformação.
Pierre Francastel explica muito bem todo este processo no seu texto fazendo uma descrição muito pormenorizada.
Através dele ficamos também a saber que toda a pintura italiana do Quattrocento deriva da arte de cenografia do teatro antigo e medieval.
Além de Brunellesci, Donatelo, Masaccio, Angelico e Masolino, foram nomes de vanguarda neste movimento artístico e sobretudo cultural.
Todos eles trataram a representação e a perspectiva como uma nova forma de ver e sentir o mundo.
A segunda vaga de artistas do Renascimento é mais consciente do seu percurso; contam-se entre eles Pierro de la Francesca, Filippo Lippi, Bellini e Carpaccio.Mas a grande referência dourinária é sem dúvida Alberti.
Todos eles contribuem para a formação de um estilo , baseado na perspectiva linear, esse conceito preciso mas ao mesmo tempo vago, que vai suportar todo um sistema baseado na assumpção de que o espírito humano assume o espaço como permanente.
O renascimento é apenas uma etapa na grande aventura do conhecimento. A perspectiva euclidiana apenas nos induz a ilusão de um espaço, que todo o ser humano pode ou não sensibilizar.
A figuração plástica não fez mais do que adaptar-se a um estádio do desenvolvimento humano e cientifico da sociedade ocidental.
Considerar que a representação pictórica do Renascimento materializa a visão natural do homem é muito abusivo e redutor. Pierre Francastel é claro na defesa deste pensamento.
Mais do que isso o autor recorda-nos que a análise de uma obra de arte deve ser completamente isenta de padrões de beleza ou gosto e baseada em procedimentos e fundamentos históricos e intelectuais de um sistema ligado a todo um conjunto de valores passados.
A análise estruturalista, com raízes numa superfície de representação, em que o signo pictórico assume a possibilidade de existência de um significado redundante perante um significante valorizado, conduz-nos sempre a interpretações diversas da obra de arte. 4
Pierre Francastel desenvolve depois a teoria de Alberti, de que a pintura seria exclusivamente a figuração do mundo visível e de como ela contaminou toda a representação pictórica ocidental por mais de dois séculos.
Para além disso a arte como a concebemos hoje é a captação do gosto e das ideias de uma época.
É depois do Renascimento que a arte caminha paralelamente aos desenvolvimentos e progressos cientifico e sociais num processo revolucionário que foi a base de todo o esplendor humano da sociedade ocidental.
Foi a libertação do espírito enquanto fluido catalisador da criação que permitiu que o Renascimento tivesse lugar.
Por muito que se queira extrapolar , a invenção da perspectiva como símbolo de uma visão própria de ver o mundo e de representação de uma concepção geral do universo, não é mais do que a transposição para o espaço pictórico dos avanços científicos que em determinado momento, determinado numero de homens teve o privilégio de reinterpretar.


A arte do Quattrocento é muito influenciada pela arquitectura pois esta sempre se baseou num equilíbrio de sistemas lineares.
O sistema de representação é mais mental do que objectivo, podendo mesmo dizer-se que a arquitectura foi pintada mesmo antes de ser construída.
Também este movimento não foi um movimento brusco e repentino mas sim o resultado de um trabalho de diversas gerações de artistas. A mudança de atitude mental característica do homem do Renascimento foi um processo progressivo de mais de cem anos.
A arte apenas exprime os valores e as forças vivas de uma sociedade; neste caso e pela primeira vez assistimos a este movimento eterno.
A dualidade de intenções e métodos demonstram-nos um certo primitivismo, que o próprio Francastel reconhece existir no Renascimento. É bem este primitivismo que nos permite perceber o mito enquanto forma de pensamento e a sua utilização simultânea ao pensamento racional e cientifico. O mundo é assim representado em expressões sublimares de imagens numa mesma composição e numa complexidade dita primitiva: estamos perante uma objectivação mítica e renovada em que as distâncias psíquicas são pela primeira vez expressas.
A criação do mito e de mitos é exemplarmente expressa por Bellini e sobretudo Carpaccio ao criarem o mito de uma cidade e de um Império, o Veneziano. A relação ténue entre a vida social e politica, o mito, a motivação e a união de um povo é pela primeira vez encarnada pelo Renascimento.
Podemos dizer que o sistema de representação inventado no Renascimento e que conduziu à perspectiva é apenas um sintoma de uma transformação em curso na mente individual de alguns eleitos .

Como conclusão, Pierre Francastel conduz-nos por linhas de raciocínio extremamente perspicazes e inovadoras; afirma ele que o sistema de representação do Quattrocento assenta numa concepção centralizada na acção humana e no homem como actor principal de uma vida harmoniosa neste planeta. Esta é a definição perfeita de um Humanismo nascente.
Este sistema serviu como espaço de representação enquanto o homem acreditou no seu lugar e no espaço terreno enquanto lugar privilegiado e mítico .
O espaço nasceu ; a sua concepção enquanto representação centrada numa humanidade valorizada impôs um modelo e um sistema por mais 4 séculos.


1 ARASSE, DANIEL (2004) : « L´invention de la perspective » in Histoire de peintures,Paris,Gallimard
2 FRANCASTEL,PIERRE (1990) : “Nascimento de um Espaço – Mitos e geometria no Quattrocento “ in Pintura e Sociedade, RJ, Martins Fontes
3 PANOFSKY, ERWIN (1991): Perspective as Symbolic Form, New York, Zone Books
4TERENAS,CARLOS(2007) : A originalidade da vanguarda,. http://carter-carter-carter.blogspot.com/

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