segunda-feira, 15 de junho de 2009

YVES KLEIN, O MONOCROMO










1 Resumo
A obra do francês Yves Klein ultrapassa claramente o estrito campo da pintura e acaba por ser por ela própria contributo para a definição do conceito sistémico de arte moderna por todas as dimensões críticas que levanta. Yves Klein é um artista maior da segunda metade do século XX com uma fulgurante e produtiva carreira, interrompida por uma morte precoce aos 34 anos.
Os monocromos de Klein são a essência da definição da própria arte moderna na medida em que reabrem fronteiras de discussão por territórios ainda e sempre por explorar.
Este trabalho propõe-se a fazer uma abordagem sintética sobre a obra de Klein e sobre as questões conceptuais que ela ainda hoje coloca, na sempre e contemporânea questão do que é ou não arte.


« Le contenu immanent des oeuvres, leurs matériaux, et ses mouvements, sont fondamentalement différents du contenu en tant que détachable de l´intrigue d´une pièce de théâtre ou du sujet d´un tableau, tels que Hegel, en toute innocence. Les identifie (…) Le contenu d´un tableau n´est pas seulement ce qu´il représente, mais tout ce qu´il contient d´éléments de couleur, de structures, des rapports ; le contenu d´une musique, par exemple, est - selon Schönberg – l´histoire d´un thème. L´objet ( représenté) peut aussi compter comme élément, de même en littérature, l´action ou l´histoire narrée ; mais ne compte pas moins tout ce qui se passe dans l´ouvre, ce par quoi elle s´organise, ce par quoi elle se modifie » 1







Yves Klein, IKB 48, 1958


2 Arte por definição

« Les tableaux ne sont que les cendres de mon art »
Yves Klein

As propostas de Yves Klein introduzem na discussão da história da arte moderna duas questões que, apesar de não ter sido o primeiro a colocá-las e a abordá-las através da sua obra (e da sua vida) conseguiu reintroduzi-las a um tempo mais mediatizado em que as questões teóricas e conceptuais tinham já saído dos pequenos círculos de teóricos e críticos de arte.
A primeira questão é o duplo estatuto da produção individual e da produção industrial e da subjacente questão da originalidade e do original. É referência obrigatória nesta problemática o texto de 1936 de Walter Benjamin “ A obra de arte na época da sua reprodução mecânica.”3. Neste texto é abordada pela primeira vez esta questão que ainda hoje inunda de cepticismo muita da recepção aos monocromos e da abstracção dita radical. Rosalind Krauss explora de maneira conceptual todas estas questões no seu texto “ A originalidade da vanguarda” 2.
A dimensão espiritual e expressiva de uma obra de arte introduz-nos a segunda questão para que as propostas de Yves Klein nos transportam. A expressão de algo de humano e como tal de sensibilidade elevada, é objectiva em Klein. A insignificação aparente e a subsequente significação objectiva vem da relação entre sujeito e objecto e por outro lado entre a forma e conteúdo. Estamos perante o que Klein definiu como “ sensibilité pictural”4
Considero que esta “subjectividade não emotiva” é o garante à continuidade da própria arte enquanto conceito perseguido quer pelo artista quer pelo espectador receptor.
A aparência estática só pode ser compreendida na medida da sua significação, significação esta que é a impregnação óbvia do espírito no espaço pictórico.

“ C´est par imprégnation de la sensibilité de l´homme dans l´espace que se fera la véritable conquête de cet espace tant convoité »
Yves Klein


Podemos, é certo, referirmo-nos e posicionarmo-nos no paradigma geral das expressões artísticas enquanto modeladoras de um conteúdo temático mais ou menos perceptível
mas teremos sempre que regressar à discussão articulatória dessa mesma forma e conteúdo. Considero que a espiritualidade e a sensibilidade da recepção fazem parte do conteúdo temático da obra, o que posiciona os monocromos de Klein no patamar de libertação dos arquétipos arbitrais e ditatoriais da representação.
A certeza da presença ou não de uma obra de arte é assim ultrapassada pela postura de artistas como Yves Klein: a assumpção da obra de arte como um todo, a obra de arte como atitude de vida, a vida como obra de arte.

Indirectamente Klein responde-nos ao dilema criativo do que fazer quando tudo está já feito.






Yves Klein, RE 21, 1960

Yves Klein, ANT 154, 1960

3 Yves Klein, criador de mitos


« Un peintre doit peindre un seul chef-d´oeuvre : lui-même »
Yves Klein


Klein afirmou que a sua forma de existência seria o acontecimento artístico por excelência. A sua estratégia comunicacional era propagandística qb o que criou condições para o surgimento de um explícito mito pessoal. Nas sua exposições aparecia normalmente disfarçado de cavaleiro contribuindo também para o estabelecimento de uma corrente mítica superlativada pelos nomes das exposições e dos hapenings em que participava: “ Apoteose de Yves, o Monocromo, Yves, o proprietário da cor, Yves o campeão da cor, Yves, o conquistador do vazio, etc.…”.
Yves Klein instalou-se assim num cenário de arquétipos bem antes do reconhecimento em cenário de expressão artística.
Gaston Bacherlard afirmou que os sonhos transportam o sonhador para fora do mundo imediato para um mundo que tem a marca do infinito 5.
Este cenário que foi muito mais do que um sonho, foi uma estratégia premeditada com objectivos claros ( e que foram plenamente conseguidos). A sua morte prematura acabou por exponenciar o factor arquétipo do mito Yves Klein.
Os seus escritos acabaram por contribuir para a construção desta imagem mítica do personagem Yves Klein. Mais do que uma atitude Dada a atitude artística e de vida de Klein adquire foros místicos. Os múltiplos códigos que propagandeava acabavam por servir de protecção individual para uma pretensa insegurança e timidez. O seu discurso podia ser na forma Dada mas expressava algo de muito diferente.

« Seigneur, dit le jeune homme, il vous serait préférable de demeurer immobile, car rien ni personne au monde ne m´arrêtera »
Chrétien de Troyes, Perceval


A sua transfiguração permanente é testemunho de uma intenção de traduzir o seu objectivo simbólico de vida enquanto obra de arte e ao mesmo tempo introduzir o misticismo simbólico.

Escreveu: “ Transfigurar-se é pensar em cada momento na essência central da pureza da santidade, a respiração faz o resto, ou seja, expande pelo corpo uma nova vida que entra por cada átomo em separado e reage cada partícula infinitesimal passando do corpo ordinário a um corpo transfigurado.”

4 A procura do Monocromo Azul


« Fuis du plus loin de la pointe assassine,
l´esprit cruel et le rire impure
Qui font pleurer les yeux d´azur »
Paul Verlaine, Art Poétique


Da análise da obra e da vida de Yves Klein podemos afirmar que ele não é nem um artista abstracto nem um pintor figurativo. Onde se encaixa então Klein no meio dos ismos da historicidade da arte?
Ao olharmos os monocromos de Klein sentimos a vibração energética e a sensibilidade primordial que transmite ao espaço em redor.
O azul ultramarino descoberto e patenteado por Klein, o International Klein Blue (IKB) flui em todas as direcções e suspende-nos o fôlego. O azul propaga-se a cada radiação e colora os sentidos numa espécie de sopro vital embriagante. É a vida na sua essência, na sua grandiosidade, é a obra de arte na sua génese.
Em 1951, Robert Rauchemberg tinha inaugurado uma exposição de quadros brancos. Yves Klein considerou este acontecimento como um marco na História da Arte. Podemos considerar que este acontecimento acabou por o marcar pois mostrou-lhe que “o caminho que trilhava estava certo” e que a imaterialidade que sempre defendia era uma conceito forte e sustentável. Escreveu em 1957: “ (…) só transportados pela imaginação alcançaremos o espaço imaterial da própria vida”.
Já Rodchenko em 1921 quando expôs os seus quadros de cores puras, naquela que foi a primeira exposição de monocromos da História, pretendeu conduzir a pintura à sua “conclusão lógica” isto é, reduzindo a forma ao mais simples e criando um paradigma conceptual de redução absoluta. Rodchenko afirmou em 1939: “ Reduzi a pintura à sua conclusão lógica expondo três telas; uma vermelha, outra azul, e outra amarela. (…) Cores primárias. Cada plano é um plano e não haverá mais representação”6
A redução niilista da “estrutura dedutiva” ( Krauss, 2004) 7 poderia fazer pensar que a pintura tinha sido resolvida de per si.

Eram necessários mais esclarecimentos.

Yves Klein é um artista que, obviamente e desde o inicio esteve afastado da monocromia académica da História da arte.

« Patience, patience,
Patience dans l´azur ! »
Paul Valérie, Palme


O seu azul impressionante ( IKB) de força e variedade, a idiossincrasia da sua utilização constante fizeram a sua imagem de marca. O IKB consegue fazer regressar ao espaço pictórico o indefinível de Delacroix, a substância poética que tão afastada andava da pintura nessa segunda metade do sec. XX. Klein transforma-se assim em poeta do azul.
O monocromo de Klein transforma-se em comprometimento com a vida numa espiral de sensibilidade pictórica nunca antes atingida. A essência do seu trabalho acaba por ser uma das explorações mais complexas e potentes do monocromo em toda a História da arte.

A experiência estética dos monocromos azuis e dos seus inevitáveis desdobramentos foi muito para além da produção repetitiva e criou uma espécie de pensamento e sensibilidade monocromática. Com os monocromos azuis a matéria impalpável é libertada em fluxos de sensibilidade constante e por vezes perturbadora.
Cor pura. Klein sublinhava muitas vezes a sua paixão enquanto artista na tentativa de libertar a cor da linha. Dizia: “ Je suis contre la ligne et toutes ses conséquences: contours, formes, composition. Tous les tableaux, quels qu´ils soient, figuratifs ou abstraits me font l´effet d´être des fenêtres de prison dont les lignes, précisément, seraient les barreaux ».


5 Visível e invisível, do condicionamento da arte à dúvida do vazio

« Je suis l´amant
J´ai des ailles
Je t´apprendrai à voler »
Max Jacob

A recusa do seu primeiro monocromo no Salão de 1946 dedicado à arte abstracta não fez Yves Klein perder a confiança. Disse em reacção: “Mon tableau représente une idée d´unité absolue dans une parfaite sérénité : idée abstraite représentée de façon abstraite, parfaitement en accord avec vos Statuts. »
Após a recusa, a consagração alternativa só teria de esperar pela primeira exposição pessoal “ Yves peintures”, um pouco à maneira do percurso de Courbet.
Catálogo de luxo, linhas em vez de parágrafos e cores em vez de quadros. Esta ausência implicará o falso? Ou o verdadeiro implicará uma presença, ainda que efémera?
Farsa ou obra de arte?
Esta atitude propõe definitivamente a simulação completa do pensamento monocromo, numa aspiração dialéctica sempre condicionada por uma cultivação da sensibilidade, origem de toda a vida, de toda a arte. A cor é-nos assim imposta como matéria impalpável.
Em termos de ideário, o monocromo azul de Yves Klein apenas é a introdução de uma revolução azul. Uma verdadeira revolução cósmica onde emerge uma realização pessoal verdadeiramente impressionante: orquestração e discursos do vazio, antropometrias, cosmogonias, utilização de lança chamas na criação artística, venda de zonas de sensibilidade imaterial, em uma espiral de happenings, arte conceptual minimal e performance que fizeram de Klein um personagem que encarnou a obra de arte em termos de conceitos global de vida e sobretudo de atitude individual.
Mais do que um pensamento monocromo estava-se perante a revolução IKB.
As acções grandiosas e espectaculares que caracterizaram o percurso de Klein nos últimos anos acabaram por influenciar as muitas vertentes artísticas do ultimo quartel do século XX.
A imagem de habitante do vazio é sublinhada por performances como a assinatura no céu de Nice e o salto no vazio. Este imaginário espacial de conquista do vazio ( não do nada) contribuiu para toda a modelação poética de Klein e de toda a sua obra.
Esta conquista do espaço vazio assume contornos líricos mesmo quando assume características de incerteza conceptual. Sobrevivência? Irreverência consciente?
A aventura monocromática é um reflexo extremo da sensibilidade, interpretada como origem civilizacional. Esta atitude sensível e espiritual transposta do exemplo de vida de Delacroix, faz deste pintor romântico a referencia maior no âmbito da pintura para Klein. É este estado e capacidade de ser pintor que encarna de Delacroix que também lhe permite recusar linearmente a colagem ao tão actual expressionismo abstracto americano.
Após uma breve estadia nos Estados Unidos assume a diferença no pressuposto da sua falta de substrato expressivo de interacção com a realidade ( sobretudo a politica). Klein assume a arte pela arte, enquanto actividade pura e resolúvel intra muros.
Impôe-se o regresso ao mestre Gaston Bacherlard :”A imaginação é o veículo da sensibilidade! Transportados pela imaginação efectiva, atinge-se a vida, ela mesma a obra de arte em si” 5


6 Le Dépassement de la problématique de l´art

« Je vais dévoiler tous les mystères : mystères religieux ou naturels, mort, naissance, avenir, passé, cosmogonie, néant.
Je suis maître en fantasmagories .
Arthur Rimbaud, Une Saison en enfer



O facto de que o IKB seja ou não propriedade de Yves Klein não é importante. Importante foi a objectividade da sua patente na prossecução de um objectivo num processo ele sim subjectivo de apropriação.
A interpretação da arte dos monocromos de Yves Klein é muito mais do que tentar decifrar simbolismos escondidos e de obedecer aos arquétipos de análise: perante a sensibilidade empolgante da cor qualquer interpretação será efémera perante a universalidade e sobretudo a eternidade da proposta.

« La connaissance ne possède complètement aucun de ses objets. Elle ne doit pas susciter le fantasme d´un tout. Ainsi, la tâche d´une interprétation philosophique des œuvres d´art ne peut pas produire leur identité au moyen du concept, les absorber en lui ; l´œuvre se déploie cependant dans sa vérité à travers interprétation. (…) En principe, ( interprétation philosophique) peut toujours faire fausse route ; et seulement pour cette raison gagner quelque chose»9
Mas no momento em que o seu azul triunfa, Yves Klein sonha em algo mais, algo que ultrapasse a própria problemática da arte. A projecção no invisível e no vazio projecta a pintura e a arte por caminhos nunca antes percorridos. A cor é substituída por vazio e o corpo assume-se como acto pictórico em possibilidades de performance de liberdade total. Evolução ou revolução?
As antropometrias de Klein estão entre as obras de maior afectividade pictórica até hoje produzidas. Fica assim resolvido o problema da distância na pintura, assumindo a carne o papel de pincel vivo teleguiado pelas indicações precisas de Klein: a substância pictórica viva.
A inscrição final é feita no lugar criador do desejo a uma só cor: IKB
O mote estava dado. As portas da percepção preparavam-se para fechar. A marca do Noveau Realisme é assim definida e extrapolada em termos teóricos: homem, corpo e realidade num chamamento à arte, da sensibilidade e do senso comum.



8 Notas e referencias bibliográficas


1 ADORNO, THEODOR W. (2006) : « Théorie esthétique », pp 493-494
2 KRAUSS, ROSALIND (1985): The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. New York . MYT
2 TERENAS,CARLOS (2007) : http://carter-carter-carter.blogspot.com/2007/12/originalidade-da-vanguarda.html
3 BENJAMIN, WALTER (1936) : « L´oeuvre d´art à l`époque de sa reproduction mécanisée », in Écrits Français (1991) .Paris. Gallimard
4 Optei aqui pelo original em francês já que a tradução para português iria introduzir novas questões teórica não relevantes para o trabalho ( picturale / pictural/ pictórica)
5 BACHERLARD, GASTON (1969): «The poetics of Space », p.183 .Boston. Beacon
6 MOSZYNSKA, ANNA. (1997): « Purity and Belief: The lure of abstraction » in The Age of Modernism: Art in the Twentieth century, p204, Berlin, VGH & Zeitgeist
8Y.A. BOIS, B. BUCHLOH, H. FOSTER, R. KRAUSS. (2004)“Art Since 1900 modernism antimodernism postmodernism”. London. Thames Hudson.
9 ADORNO, THEODOR W. (2006) : « Dialectique négative », pp. 146









sábado, 9 de maio de 2009

A conquista da América

Ficha de Leitura
TODOROV, Tzvetan, « A Conquista da América”, 1990, Lisboa, Litoral Edições

A. Introdução
« Quero falar da descoberta que o eu faz do outro » . Com esta frase inicial Todorov dá o mote para este interessante ensaio (no original “La conquête de l´Amérique, la question de l´autre”) em que é analisada ao detalhe a alteridade e a visão que um povo tem de outro e as interacções que se estabelecem no contacto entre dois povos e culturas (através dos seus representantes). Esta análise é feita tendo por base o exemplo histórico da descoberta e conquista da América Central ( México e Caraíbas) pelos espanhóis no século XVI.
O trabalho do franco-bulgaro Todorov foi sempre marcado pela relação entre o Eu e o Outro mas numa perspectiva meramente linguística.
Ao analisar um determinado período histórico através de relatos descritivos da época, que já por si são visões condicionadas da realidade, Todorov expõe-se de uma maneira clara e directa pois não consegue libertar-se de uma perspectiva muito pessoal politicamente critica e que acabou por condicionar todo o ensaio.
Este tipo de análise estática e modular característica do seu estruturalismo militante entra por caminhos de análise sociológica muito limitada que transforma o texto em uma mensagem moralista de carácter meramente panfletário.
A tentativa de transportar os exemplos do passado para a actualidade e assumir a sua critica aos olhos de um conhecimento e de valores actuais e pretensamente globais transformam este ensaio num trabalho condicionado politicamente e definitivamente muito datado.

I.”Descobrir”
Neste capítulo é feita uma análise da viagem e dos motivos de Colombo e de como eles definiram o que viria a ser o paradigma da descoberta e posteriormente o paradigma da conquista. O Outro como o ente completamente desconhecido e o Eu com entidade única e redutora perfeitamente condicionada aos axiomas societários limitados do século XVI.
Todorov demonstra desde o inicio “ de que lado está”, isto é, do lado dos opressores perante a redução primária à relação conquistador\ conquistado sempre num plano de análise de homem urbano do século XX, carregado de valores assimilados e construídos ao longo de mais de 500 anos ( que também contribuiu o facto que analisa). É disso prova a citação inicial da mulher Maia, casada, atirada aos cães por se recusar a ser seduzida pelos conquistadores.
Neste capitulo também são analisadas as intenções de Colombo antes e depois da descoberta dos novos territórios, a sua paixão pela natureza e a sua profunda religiosidade.
A questão de base é que foram após os primeiros contactos com os habitantes desses novos territórios que se estabeleceu uma primeira fase de um relacionamento que acabaria por condicionar os 200 anos seguintes. Na prática os autóctones não eram considerados como seres humanos como provam quer os escritos de Colombo e os relatos dos cronistas das Índias.
O autor também desenvolve neste capítulo os esquemas de comunicação, verbal e não verbal, as novas linguagens, as primeiras traduções, os primeiros contactos e o estabelecimento das primeiras relações quer humanas quer institucionais.

II.”Conquistar”
Neste capítulo são analisados, perante as mesmas premissas, os factos que levaram a efectivação da conquista do México por Cortez e a todo o complexo jogo de relações e interpretações que se estabeleceram no contacto entre duas culturas e civilizações tão diferentes.
O autor também nos desenvolve possíveis perspectivas do Outro perante os invasores espanhóis e os complexos jogos de poder e hierárquicos que condicionaram toda a sociedade Asteca e dos povos que habitavam no México.
São também dissecados por Todorov as dificuldades de comunicação efectiva e de como o controlo total da mesma por Cortez acabou por ser fundamental para uma conquista rápida apesar da desproporcionalidade das forças em questão.
É também sublinhado o elevado simbolismo e ritual da sociedade Asteca e de como os signos acabarão por antecipar o desfecho final: o Outro e o Eu em perspectivas anacrónicas, diversas e distantes. O autor faz também uma análise do signo como limitador e condicionador numa perspectiva estruturalista (comme il faut) em que o significantes e significados quase nunca coincidem quando comparados.

III.”Amar”
Em mais um capítulo peculiar, o autor transporta-nos para o patamar seguinte onde são introduzidos os níveis da compreensão, admiração e respeito perante uma sociedade Asteca extremamente desenvolvida e rica. Estes sentimentos acabarão por degenerar em aniquilação e destruição do objecto admirado pelo receptor desorientado. Porquê? Interroga-se Todorov. Esta questão irá percorrer toda a ponta final do livro onde são detalhadas as razões do genocídio directo e indirecto da população indígena.
Neste capítulo o discurso do autor assume por vezes um discurso extremamente vitimizador e redutor que descarta qualquer tipo de análise objectiva e imparcial.

IV.”Conhecer”
Este capítulo é para mim o mais interessante, racional e consistente pois define a relação com os outros sob o prisma da alteridade e em que são definidos vários níveis segundo os quais a relação é estabelecida:
1-Plano axiológico: juízo de valor (bom/mau, amor/ódio)
2-Plano praxiológico: aproximação ou afastamento (identificação/ ignorância, assimilação/ rejeição)
3-Plano epistémico: conhecimento ou indiferença

Com base nestes níveis Todorov analisa todos os intervenientes históricos que testemunharam e participaram nessa etapa marcante da passagem de uma mentalidade medieval para uma modernidade que se viria a revelar redefinidora e construtora de novos conceitos e valores.

B. Conclusão
Apesar de ser uma reflexão ligeira sobre o comportamento do Eu perante o Outro, sob o pano de fundo de uma medievalidade efectiva, esta obra de Todorov acaba por ser uma boa introdução para este tema tão actual, se analisado à luz do multiculturalismo latente em todas as sociedades modernas.
Na prática o que este ensaio revela é um diálogo por vezes academicamente injusto pois baseia-se nos registos de actores de acontecimentos, muitas vezes elaborados ainda a quente, para tirar conclusões, estas sim baseadas num registo contemporâneo e já no fim de uma linha histórica.
A questão da identidade é bem mais complexa e definitivamente é uma variável complexa numa equação não standard de valores e culturas múltiplas.
A nossa actuação perante o Outro é sempre condicionada pelos registos históricos, culturais e económicos que acabam por condicionar a alteridade.


Actores e personagens históricos analisados e consultados por Todorov para este ensaio:
Cristóbal Colón
Bartolomé de las Casas
Vasco de Quiroga
Gonzalo Guerrero
Hernán Cortés
La Malinche
Alvar Núñez-Cabeza de Vaca
Diego Durán
Bernardino de Sahagún

Phrases / mots clés
O Eu e o Outro; alteridade
Identidade ; imposição de valores
Manipulação, libertação, repressão e manipulação.
Diferença na Igualdade

Liaisons/ Voir aussi
Diálogo de Culturas
Estudos Pós-Coloniais; multiculturalismo

Influências
Michel Foucault; Edward Said

Literatura Europeia e Construção Colonial da Realidade Americana

Ficha de leitura

« Literatura Europeia e Construção Colonial da Realidade Americana», Artigo de Darío Villanueva \ Literatura e História – Actas de Colóquio Internacional do Porto, 2004

Notas introdutórias
O primeiro aspecto a realçar é a extrema clareza deste artigo de Darío Villanueva publicado no âmbito do Colóquio Internacional do Porto 2004 – Literatura e História. O texto de Darío Villanueva contribuiu inexoravelmente para a clarificação dos modelos teóricos e críticos no âmbito dos estudos e das literaturas comparadas, nomeadamente no campo da construção da identidade americana.

Signos e simbolismo
O autor começa por nos relatar um episódio do livro Memorias do Marquês de Bradomín em que este se refere ao Novo Mundo numa imagem estereotipada e arquetípica que consubstancia uma " descoberta particular da América, quatro séculos depois da colombiana".
A experiencia simbólica é também referida na obra de Bernal Díaz del Castillo, Historia verdadera de la conquista de la Nueva España onde os exemplos da "guerrilha" simbólica de Cortês são diversos.
Em seguida, é com naturalidade e lógica que Darío Villanueva cita a obra de Todorov, onde é dissecada a descoberta que o eu europeu faz do eu americano. Este tipo de análise inovadora valoriza os signos e a alteridade dos mesmos perante a surpresa e sobretudo a angústia da novidade.
Posteriormente é referenciado Stephen Greenblatt e a sua análise política da apropriação colonialista do Novo Mundo; esta apropriação iniciou-se através de técnicas discursivas e práticas de representação e pressupostos nativo-americanos que jogaram a favor dos conquistadores.
O delineamento semiótico é depois mencionado na referência obrigatória à obra Books of
the Brave de Irving Leonard, onde se analisa a percepção cosmovisionária dos primeiros espanhóis que chegaram à América, baseada e condicionada pelo imaginário cavaleiresco que naturalmente inundava toda a estrutural mental de percepção daqueles corajosos homens. A importância deste livro é realçada numa referência posterior de Darío Villanueva em que valoriza a sua importância para a teoria moderna na perspectiva da influência da literatura nos factos humanos.

O real maravilhoso

Darío Villanueva continua o artigo com a referência ao prólogo da obra El reino deste mundo de Alejo Carpentier, autentico manifesto identitário do novo romance ibero-americano. Aqui e em breves linhas Carpentier expõe a sua teoria do " lo real maravilloso": a realidade enquanto tal não é mais do que uma sucessiva construção mental ao longo de diversas épocas, dependendo sempre da percepção em cada uma dessas épocas.
O universo do realismo mágico nascia em sede literária e em forma de manifesto: sabemos da sua importância ainda hoje e como é essencial na construção e análise dos novos mitos e de identidades hispano – americanas.
O autor continua a dissecar as ideias mais emblemáticas de Carpentier sobretudo a sua definição de realidade, enquanto " construção mental e culturalmente socializada que varia de uma época para outra".

O estímulo da realidade americana
O afrontamento da nova realidade americana criou situações de controversa dualidade onde os primeiros relatos assumem estética simbólica de sobrevalorização da nova realidade e que se assumem como marcos na construção do novo universo mágico, isto é dessa concepção de América assim construída.
Darío Villanueva refere depois a citação de Edmun O´Gorman: a América não foi descoberta, mas inventada. O reino das fantasias foi construído na base das primeiras narrativas assumindo o terno sopro das quimeras e utopias tão em voga nessa época imbuída do imaginário cavaleiresco.
No seguimento deste raciocínio a referência posterior é sobre a obra de 1603 de Lope de
Vega - El nuevo mundo descubierto por Cristóbal Colón. Nesta obra, imagens de uma imaginação profícua vão-se sucedendo, construindo um mundo hermético e simbólico povoado de signos bem significativos que condicionam a eterna dicotomia entre a imaginação e a credibilidade racionalista.
Na sequência, uma referência obrigatória é feita a Irlemar Chiampi e ao seu "ideologema de maravilha" que povoa a narrativa ibero-americana.

A improvável credibilização do testemunho oral
Na parte final do artigo o autor refere o surpreendente processo de credibilidade e inscrição histórica da nova realidade fundada em simples testemunhos orais.
É a chamada "imaginação construtiva" que Collingwood bem definiu e que se seguiram processos mais ou menos globais de mitificação de realidades fantásticas e quimeras utópicas.
Darío Villanueva termina o artigo definindo o " encerramento do círculo que da ficção vai à realidade ou à história e dela regressa".
A construção desta nova realidade foi assim um processo abstracto e simbólico claramente realizado através de estruturas narrativas.




domingo, 1 de fevereiro de 2009

Os Poemas Homéricos

« E, além disso, o maior de todos os monumentos, que paradoxalmente surge desta época obscura: os poemas Homéricos. » 1

Nesta recensão irão ser abordados os dois marcos fundamentais na construção da cultura e da literatura ocidental, a Ilíada e a Odisseia. Para isso, iremos recensear alguns capítulos do livro de Maria Helena Rocha Pereira.1
Sendo os primeiros livros da literatura europeia são também os grandes livros referencia de toda a cultura ocidental.
Vinte e oito séculos depois estas duas obras mantém a sua capacidade esmagadora e comover e perturbar.2
A origem da literatura assenta na palavra poética. Primeiramente orais, as formas poéticas formam a base da literatura primitiva séria: textos religiosos, epopeias, genealogias. De inicio principalmente vocacionada e relacionada com acontecimentos extraordinários ou sagrados, a poesia grega era considerada uma forma de inspiração divina, enquanto a prosa era reservada a questões mais triviais e normais.
Podemos afirmar o extraordinário papel que cabe ao receptor/leitor pois a herança que nos cabe ao transmitir a cultura ocidental por vezes passa desapercebida.
Podemos dizer que no século VII antes de Cristo, no fim de uma longa tradição épica oral, surgem estes cantos de sangue e lágrimas, em que os próprios deuses e homens são feridos e os modelos e exemplos são construídos.

A Questão Homérica

Falar dos Poemas Homéricos é falar da questão da sua autoria e data de composição. Sobre a autoria existem autores que defendem que os poemas tiveram autores diferentes ( os analíticos) e os autores que defendem um só autor ( os unitários).
Sobre a data de composição dos poemas existem muitas duvidas: sabemos hoje que os textos são da época micénica e sobre heróis micénicos. Esta teoria é reforçada pela referencia no canto X da Ilíada a um ornamento micénico.
A repetição de versos inteiros foram fruto de uma tradição oral. Esses epítetos eram condicionantes da memorização e da métrica.
Relativamente à historicidade da Ilíada ela sempre foi posta em causa mas diversas escavações no século XIX e já no século XX demonstraram a autenticidade de muitos dos
lugares homéricos. Referencia à escavações de H. Schilieman em 1871 e as de Korfmann que em 1987 deu por encerrada a questão da localização de Tróia ao não só localizá-la mas provar alguns dos acontecimentos históricos referidos nos Poemas Homéricos.


Os Poemas Épicos

Os poemas épicos são longos textos baseados numa métrica bem definida, o chamado hexâmetro dactílico; um pé dactílico é composto de três sílabas, longa-breve-longa; o hexâmetro é apenas uma medida de seis pés.
Estes poemas cantaram lendas tradicionais chamadas ciclos ou epopeias, que continham episódios emblemáticos da história do povo grego. Muitos destes episódios mesmo tendo uma base real eram sempre abordados numa perspectiva mitológica.
Poemas épicos como a Ilíada e a Odisseia pertencem ao ciclo troiano. As lendas tradicionais referidas exploram e dissertam sobre os momentos chave da História de um povo e tentam responder a muitas questões de natureza existencial e escatológica.
As epopeias clássicas foram construídas à volta de personagens heróicas e onde os seus actos e principalmente as suas escolhas serviram de modelo e referencia cultural e cívica em autênticos exemplos modelares de vida. Os ciclos épicos cobrem toda a história mitológica de cidades como Tebas ou Micenas e contam os percursos heróicos de Hércules, Teseu, Perseu ou Jasão.
A literatura grega começa com as duas grandes epopeias do ciclo troiano, a Ilíada e a Odisseia. Estas obras foram passadas da oralidade à escrita cerca de 750 aC. Quer elas sejam ou não obra de um ou múltiplos génios, o nome de Homero é desde sempre a referência literária ocidental por excelência. O debate sobre estes textos épicos é ainda actual e podemos afirmar que são neles que nasce a literatura ocidental.
Assim, para compreender toda a cultura grega é necessário desde logo ler estas duas magnificas obras.


A Ilíada

Este primeiro Poema Homérico é de assunto limitado: a cólera funesta de Aquiles. Depois de uma breve introdução somos lançados “in media res”, isto é, no meio dos acontecimentos.. O nome Ilíada remete-nos para Ilíon ( Tróia). Em 16000 versos é-nos possível revisitar uma guerra de muitos anos, apesar de tudo se passar em apenas 50 dias, dos quais apenas 14 dizem respeito à acção . No entanto, os condicionantes do passado e das crenças mitológicas irão marcar todo o poema.
A Ilíada desenrola-se no décimo ano da guerra de Tróia. O texto começa pela querela que opõe o chefe dos gregos Agamémnon e o herói Aquiles. Este retira-se da batalha que provoca a derrota dos gregos contra os troianos liderados por Heitor.
Não obstante todos os pedidos, este ultimo recusa retomar o combate mas para que os gregos não percam a face e autoriza o seu amigo Pátroclo a combater por si. Heitor mata Pátroclo e Aquiles, retoma o seu lugar e o combate numa fúria sangrenta. Aquiles mata Heitor e profana o seu cadáver que provoca a vinda da mãe enviada pelos deuses que, em conjunto com o pai de Heitor, o rei Príamo, suplicam a Aquiles que termine tal profanação.
Aquiles aceita, enquanto o rei Príamo leva o cadáver do filho para exéquias dignas de um herói. O destino e a morte, a responsabilidade, o valor da vida a honra, a glória, a amizade e o amor estão perfeitamente ligados nesta obra extraordinariamente bela.
Verificamos que só há um fio condutor e uma só acção, que é retardada até ao fim. O discurso narrativo alterna com o discurso directo ( mais de metade dos versos).
De entre as figuras de estilo presentes na Ilíada a mais emblemática é a símile ou comparação que fornece a paisagem colorida à narrativa.
O contraste é uma das características homéricas e como tal muito presente na Ilíada. Este recurso poético é exemplificado na dicotomia guerra vs paz.
Apesar de haver muitas marcas de técnica e tradição oral pode-se hoje afirmar que a Ilíada foi concebida por escrito.3
Herberto Helder lembrou-nos “ a escrita suprema de imaginar por músicas as coisas; não estaria ele a lembrar-se da Ilidia?

A Odisseia

A Odisseia pertence à categoria das epopeias apeladas Nostoi ou Regressos que conta o regresso dos heróis gregos após a guerra de Tróia. É um poema de aventuras, das múltiplas histórias que excitam a atenção do ouvinte, e do espírito aberto a todas as curiosidades de “Ulisses dos mil artifícios” (…) 1.É a história de Ulisses, rei de Ítaca, que no seu regresso a casa com os seus homens vai viver uma série de aventuras fantásticas nomeadamente uma viagem ao país dos mortos. Azar e más decisões custam-lhe o seu barco e deixam-no naufragado e prisioneiro da ninfa solitária Calipso na sua ilha. Mas os deuses apoiados por um bom povo de marinheiros ajudam-no a regressar a casa onde encontra a sua mulher Penélope, o seu filho Telémaco e toda a sua criadagem ameaçados por um grupo de pretendentes que consideravam Penélope já viúva e assim pronta a casar novamente. Disfarçado de mendigo, Ulisses conspira com o seu filho e com a ajuda de Athéna massacra todos os pretendentes e reencontra Penélope.
Mito, epopeia e lenda misturam-se numa história inquietante e por vezes extremamente humana nas escolhas e observações dos heróis, nas suas responsabilidades e sobretudo na sua perseverança.
Ulisses é uma figura aquém as circunstancias, e não da sua própria natureza, conferindo-lhe uma dimensão heróica. (…) que determina porque se tenha sempre projectado em Ulisses a essência do Homem Mediterrâneo, logo, pela cultura, do Homem Ocidental.4
Todas as minhas personagens são como Ulisses, são soldados perdidos em território inimigo e num mar hostil ( Arturo Pèrez-Reverte)5.
Foi Proust que nos revelou que toda as emoções imediatas da contemporaneidade estão todas contidas nas remotas personagens homéricas dando-lhes uma dimensão Universal.

A comparação entre os dois poemas

Podemos afirmar que sendo muitas as semelhanças também muitas são as incongruentes diferenças dando um pouco de força aos analíticos que defendem uma autoria diferente para os dois poemas. Apesar dos deuses serem os mesmo a sua interacção com o Homem alterou-se com um afastamento, na Odisseia, do carácter humano desses mesmos deuses incorporando-se num realidade mais abstracta e mitológica.
Na Odisseia são pela primeira vez abordadas e assumidas as noções de culpa, castigo e de justiça.
Todas as grandes diferenças detectadas na análise dos dois poemas fazem-nos acreditar que Homero escreveu a Ilíada na juventude e a Odisseia já na velhice.


A concepção da Divindade nos Poemas Homéricos

Actualmente ainda paira a duvida se a origem da mitologia grega está em Homero e mesmo em Hesíodo ou eles apenas descrevem uma realidade que já existia.
Heródoto de Halicarnasso, o grande pai da História era um dos que, à semelhança de Platão, o afirmava categoricamente.
O panteão grego é definitivamente ligado ao panteão micénico e mesmo indirectamente ao minóico o que faz crer na evolução quer das divindades quer da origem delas próprias.

As divindades homéricas são luminosas e antropomórficas o que, comparativamente ás religiões existente até então, deram aos gregos uma absoluta e incontestável superioridade teológica.
No entanto a noção de eternidade das divindades só aparece mais tarde em Platão e Aristóteles.
Temos então que, naturalmente, o homem conjectura a actuação divina sempre perante factos enigmáticos e obscuros. Na Odisseia a evolução perante os desígnio dos deuses é clara pois assume-se o cumprimento da justiça terrena pela intervenção divina.


Referências Bibliográficas :

1 MARIA HELENA,ROCHA PEREIRA (2006) : « Estudos de História da Cultura Clássica », Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
2 LOURENÇO, FREDERICO (2003) : In Introdução « Ilíada », Lisboa, Livros Cotovia
3 BOUVIER, DAVID (2002) : « Le Sceptre et la Lyre », Grenoble, Jérôme Millon
4 LOURENÇO, FREDERICO (2003) : In Introdução « Odisseia », Lisboa, Livros Cotovia
5 Publico, Suplemento Mil Folhas, 2-11-2002

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

« Perceval le Gallois », de Éric Rohmer


Ficha do filme
« Perceval le Gallois », de Éric Rohmer segundo « Perceval ou o Romance do Graal » de Chrétien de Troyes, realizado em 1978.

Notas introdutórias
O primeiro aspecto a realçar desde já é a grande proximidade ao texto de Chrétien de Troyes. O imaginário cavaleiresco está perfeitamente representado neste autentico filme de culto. Os efeitos especiais adquirem uma função de distanciamento para limitar à ditadura da imagem, através de uma desproporção estética ( natural vs artificial) e uma dissociação histórica propositada e assim dar um relevo prioritário ao texto.
O texto original de Chrétien de Troyes contribuiu inexoravelmente para a construção de mitos ao assumir-se como um dos primeiros pilares do Imaginário Literário ocidental.


De descoberta em descoberta
O próprio filme assume o jogo simbólico do livro através de uma carga psicológica e escatológica muito grande. É assumida a relação de artista/realizador com o tempo, não o tempo diacrónico (passado, presente e futuro) mas sim um tempo sincrónico ( um tempo de reflexão). Neste particular assume verdadeira importância o episódio do Rei pescador e o episódio do confronto com o Graal.
A cada experiencia e aventura uma bifurcação se apresenta a Perceval. No romance, a passagem continua de um lugar a outro é uma característica deste tipo de estética cavaleiresca num contínuo de linhas isomórficas.
No filme, os personagens são actores e narradores, simultaneamente interpretes e romancistas através de uma expressão continua na terceira pessoa dando assim mais ênfase ao chamado estilo cortês, estilo ainda jovem e à procura de uma linguagem literária ao tempo de Chrétien de Troyes.
A experiencia dos limites da transgressão/ não transgressão e da ambivalência, condiciona e constrói o curso dos acontecimentos sempre através do recurso a uma dialéctica interior de decisão pessoal.
Uma palavra também para o recurso à animação que, como outros métodos de ruptura fílmica mencionados anteriormente, acentuam a atenção e fidelidade ao texto original.

A modernidade da Idade Média
A relação colocada em jogo por Éric Rohmer entre a Modernidade e a Idade Média é uma das grandes características do filme e que, neste caso, é assumido de uma forma que tem tanto de estranha como de original, sempre baseado na estética românica.
O universo romanesco tinha em Perceval a sua génese; sabemos da sua importância ainda hoje e como o foi também importante na construção de mitos e de símbolos da civilização ocidental.
E é nesse simbolismo e nessa iconografia que Éric Rohmer se baseia para imaginar o realismo da Idade Média pois, era assim que as pessoas dessa época retratavam a sua própria realidade.
A Arte Românica tinha assim tendência à imitação e à reprodução ao mesmo tempo que sugeria uma ilusão e uma sugestão de estilização deformadora. ( contraste entre as raízes greco-romanas e as raízes das artes primitivas cristãs e célticas)
A precisão do detalhe compartilhava o espaço narrativo com uma certa forma de abstracção ao mesmo tempo que a violência mais cruel sucedia a uma compaixão desconcertante.
Estas oposições são bem visíveis na dicotomia dos personagens Perceval e Gauvain.
Esta abordagem complexa e dialéctica é a essência da própria modernidade num diálogo de paradoxos que estimula processos narrativos enquanto base de construção de imaginários mais ou menos escondidos. Este jogo de aparências vai mais longe e encarna a eterna dialéctica do ser e o parecer, o consciente e o inconsciente.
Esta modernidade baseada no realismo estético e estilizado da Idade Média, fá-la brilhar numa riqueza de imagens que nos transportam para conceitos mais filosóficos e teológicos como o da Beleza e do Eterno Feminino, fundamento cristão da nova representação do papel da mulher.

Uma estética de aliança, de estratégia e de articulação
O afrontamento de Perceval consigo mesmo e com as situações de dualidade que se lhe apresentam fazem desta estética simbólica um marco na construção quer do universo cavaleiresco quer do imaginário literário ocidental.
Esta estética é sobrevalorizada pela utilização do arco românico da abside e principalmente pela utilização da música e do coro como base narrativa; a música harmoniza e liga.
É assim, num décor feito de curvas e elipses que as personagens circulam sem fim, os cavaleiros não despem as realistas armaduras metálicas numa espécie de curvatura espacial sem perspectiva real.
O filme de Rohmer é mais do que tudo, a essência da representação imaginária do real através da utilização dos protosignos bases de um imaginário literário base da nossa civilização: o universo cavaleiresco.

Da glória à cruz
As imagens de Perceval e de cavaleiros vão-se sucedendo construindo um mundo hermético e simbólico povoado de signos bem significativos de uma estética e antropologia românica.
A passagem de Deus cavaleiro/ Perceval a Deus homem/ Jesus é feita por recurso a uma livre adaptação final de Rohmer, em que representa a Paixão de Cristo e em que a Palavra se faz carne, a Palavra que vem de outro e se faz entender.
Perceval passa do ver ao entender. O caminho interior de Perceval está traçado e descoberto.
Esta é a demanda do Graal.

Mots-clés
Imaginário cavaleiresco, amor cortês, acolhimento, compaixão, Imaginário cavaleiresco. O Mito do Graal, tradição celta/pagã, mágica vs tradição judaico-cristã, cristianização do imaginário pagão, procura do ser interior, literatura cortês, herança literária francesa e provençal, simbólica do Graal, herança romântica séc. XIX, a procura, o caminho, essência divina e essência humana.
Dupla estética, realismo-precisão-simbolismo, Modernidade da Idade Média, estilização, deformação e abstracção.

Liaisons/ Voir aussi
Mulher/Eterno feminino, fonte de vida, objecto de busca

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O génio civil romano

« Estes trabalhos gigantescos provocaram a admiração do historiador Dionísio de Halicarnasso, que por volta do ano 7 aC., considera que as mais prestigiadas realizações materiais de Roma eram os aquedutos, as estradas empedradas e os esgotos (III, 67), e acrescenta que a sua admiração vai não só para a utilidade destas obras como, ainda mais, para o preço que custaram. Observação reveladora que mostra bem o contributo de Roma para a vida colectiva. As cidades helenísticas tinham de facto, as maiores dificuldades em estabelecer orçamentos para obras de vulto, mais por má gestão dos recursos do que por falta deles. Roma, pelo contrário, possui uma administração financeira submetida a controlos exactos. O rigor orçamental é um dos benefícios do Império, pelo menos no inicio (…) » 1



Nesta dissertação irão ser abordados alguns dos grandes momentos do génio civil romano. Os romanos eram engenheiros especializados e construtores de espírito prático, como se pode verificar um pouco por todo o lado, na obra que eles nos deixaram. Construíram cidades, prédios, estradas, aquedutos, túneis e pontes que ainda hoje são utilizados. No objectivo de conquista de novas terras, os romanos construíram também construções precárias como campos militares, campos de cerco e maquinaria militar.
Os engenheiros romanos já adoptavam quatro etapas para edificar as suas construções duráveis: calculo, preparação do terreno, construção de fundações estáveis e por fim construção em definitivo.
Uma outra característica dos construtores romanos era a sua capacidade de resolução de problemas práticos e a sua determinação pragmática para fazer as coisas da melhor maneira. Não eram, ao contrário do que se pode pensar, adeptos do experimentalismo nem das construções de luxo. Uma grande parte do seu sucesso é devido a uma sistematização e utilização constante e rigorosa das técnicas construtivas que dominavam já desde o sec. VI aC. As soluções funcionais eram adoptadas e usadas de uma maneira quase dogmática.


O Império construía alicerces em cimento
Os romanos começaram a trabalhar o betão cerca de 300 aC. Utilizavam-no como base construtiva das suas construções e a su técnica denominava-se Opus cementicium. Estavam constante mente a melhorar a qualidade do cimento: primeiramente descobriram que, juntando à mistura a areia vulcânica do Vesúvio, o betão ficava tão duro que aguentava todo o tipo de esforço e condições, inclusive a submersão. Actualmente o betão é feito com mistura de cilicia para obter o mesmo resultado. A técnica de afinação do betão foi evoluindo nomeadamente nas técnicas de preparação ( mistura com gordura animal) de maneira a modificar as propriedades de colagem e de humidificação. Assim podiam utilizar o betão desde os climas secos aos húmidos e mesmo debaixo de água.
Excepto as gruas e os guindastes mecânicos, as peles e os instrumentos de talha poucos mais instrumentos eram necessários para trabalhar e moldar o betão. Os romanos utilizavam também o diptra um instrumento para medir as diferenças de altura. Para fazer ângulos rectos, traçar paralelas e calcular intercepções os romanos utilizavam a groma e para medir os níveis de água nos aquedutos utilizavam as chorobates.

Todos os caminhos vão dar a Roma
A conhecida expressão “ todos os caminhos vão dar a Roma deverá como é óbvio ser tomada ao inverso. Os romanos construíram a sua enorme rede de estradas a partir do centro da cidade de Roma. Os marcos de distância ao longo das estradas eram calculados a partir do marco de ouro do Fórum romano ( miliarium aureum); uma milha romana correspondia a mil passos. Entre as primeira vias a ser construídas estão as famosas via Appia, a via Salaria e a via Latina.
Os romanos construíram a sua rede de estradas inicialmente por razões militares e só depois por razões comerciais. O objectivo principal era o de defender os interesses de Roma através da facilidade de deslocamento das suas legiões.
As estradas estenderam-se na Península Itálica de norte a sul e de este a oeste; depois a rede de estradas estendeu-se naturalmente ás províncias exteriores nomadamente à Gália e à Macedónia.
Alguma exemplos das primeiras estradas principais da Republica romana:
- Via Appia ( 312 aC), de Roma a Brundisium ( Brindisi) via Capua.
- Via Aurelia ( 241 aC), de Roma a Pisa ao longo da costa.
- Via Flaminia ( 220 aC), de Roma a Ariminum (Rimini).
- Via Aemillia ( 187 aC), de Roma a Plaisance via Bolonha.
- Via Cassia( 171 aC), de Roma a Arezzo, Florença e Pisa .
- Via Egnatia ( 146 aC), de Dyrrachium ( Albânia) a Kipsela ( Turquia) ao longo de mais de 800km no Norte da Grécia.

A construção de estradas
Quando um traçado de uma estrada era proposto, o chamado censor estimava o custo e era publicado um concurso publico (publicani) destinado a empresas privadas. O traçado era definido rigorosamente. As estradas eram quase todas em linha recta sem necessidade de curvas suaves já que todos os veículos se deslocavam lentamente. Assim era seguida a topografia natural.
Depois de definido o traçado era feito um emparedamento base de 5 metros de largura e 1 de profundidade assim como fossas de drenagem de um lado ao outro da via. Esta base era essencial para que a estrada pudesse suportar a passagens das legiões e dos seus grandes carros ( cada um com mais de 35 toneladas).
Muitas estradas eram cobertas de gravilha e só eram pavimentadas na proximidade das cidades; próximo das zonas mineiras os romanos utilizavam os resíduos mineiros. Em África as estradas em terra batida eram tão duras que não necessitavam de revestimento em pedra.
O empedrado era feito minuciosamente por pedras talhadas para esse fim e coberto de gravilha para cobrir as juntas.
As principais vias romanas eram apelidadas de viae publicae e eram financiadas por fundos públicos. As vias militares eram financiadas por fundo militares. Havia também as vias secundarias ( actus) e as vias privadas ( viae privatae) que serviam para interligar as vias publicas.

Em terreno montanhoso
As vias romanas seguiam geralmente os contornos da paisagem pois as escavações em grande escala não eram praticáveis. Mas, em certos casos difíceis, era melhor atravessar a montanha em vez de contorná-la. Os romanos eram especialistas em matéria de túneis e pontes e mais tarde começaram também a fazer entalhes nas colinas para que as estradas se mantivessem perpendiculares ao longo das curvas e declives.
A durabilidade e consistência das construções romanas é testemunhada pela utilização ainda hoje de muitas pontes, muitas delas de grande dimensão como é o caso da extraordinária ponte de Alcântara em Espanha obra-prima do arquitecto Caius Julius Lacer. Este deixou gravado no seu tumulo, debaixo da ponte: “ construí uma ponte que atravessará os séculos”.
A sua técnica na construção de pilares e arcos era extraordinária e as suas pontes sulcavam vales e rios facilmente. A técnica de construção dos pilares era sofisticada: usavam já processos de construção de diques e posterior drenagem para construção a seco dos robustos pilares sob enormes fundações.
Em zonas de pântanos as estradas eram construídas fundações e placas que permitiam de ultrapassar esses difíceis obstáculos. Se o obstaculo era intransponível eram criados serviços de barcas ou balsas para ligar as duas pontas da estrada.

Engarrafamentos e viagens
As vias romanas já possuíam terríveis problemas de tráfego sobretudo próximo das grandes cidades. Julio César decretou que os transportes de mercadorias só podiam circular à noite mas o barulho nocturno das carroças era bem pior que os engarrafamentos diurnos.
Dentro das cidades as estradas eram ladeadas por passeios sobreelevados para os peões. Foram construídas também passagens superiores nos sítios mais movimentados. À entrada das cidades havia ao longo da estrada, casas de banho, termas e hospedarias.
Nos trajectos longos, os viajantes ricos descansavam e passavam a noite nas suas ou nas villas dos amigos; os funcionários que tinham uma autorização de viagem ( diploma) usavam os diversos edifícios públicos ( villulae) e trocavam de cavalos em entrepostos postais ( cursus publici). Os outros viajantes tinham de contar com os albergues existentes ( mansiones) e as tabernas ( tavernae). Os albergues eram mantidos pelos impostos locais e além de cama forneciam o couvert . Ao redor desses estabelecimentos pululavam oficinas de reparação, lojas e ateliers de pequenos serviços de apoio aos viajantes.
O poeta Horácio conta-nos na sua Sátira I,5 uma viagem com os seus amigos Mecenas e Virgílio ao longo da via Appia. Esta obra deixou-nos inúmero detalhes, etapas e peripécias de uma viagem nessa época. Esta viagem teve como objectivo tentar conciliar as relações entre Marco António e Octávio durante os momentos difíceis do segundo triunvirato

A gestão da água
Os romanos aprenderam desde muito cedo a transportar a água sobretudo para se livrarem dela em terrenos cultiváveis ao redor das cidades. Rápidamente perceberam que necessitavam da água para beberem e se lavarem e reverteram o processo abastecendo as cidades. Foi Appius Claudius o cego, que propôs o primeiro aqueduto, acqua Appia em 312 aC. e que tinha mais de 16 km. O segundo, anio Vetus de 272 aC. tinha mais de 80 km. Em 50 anos, os romanos construiram em média um aqueduto por ano.
O principio construtivo do aqueduto era relativamente simples: uma vez descoberta a fonte de água construía-se uma pequena bacia ( piscinae) de maneira a que a água sob a força da gravidade corresse até à cidade através de uma grande canalização que se desmultiplicava em pequenas redes secundárias (rami).
Foram construídos centenas de aquedutos, muitos dos quais ainda em uso hoje, tais como o do Vaticano e o de Segóvia.

Guardar a água na cidade

Quando uma fonte de água era descoberta os medidores calculavam a diferença de altura entre a origem o destino do aqueduto dentro da cidade. Um traçado era então calculado para que a água deslizasse suavemente e ininterruptamente. Se bem que os aquedutos são apreciados pelos seus belos arcos, a maior parte deles era subterrâneo para que a água não se evaporasse e se mantivesse fresca. Além disso este facto protegia os cursos de água de potenciais tentativas de envenenamento por parte dos inimigos.
Poços de equilíbrio e gestão eram construídos ao longo do itinerário o que permitia o acesso ao aqueduto para controlo e obras de reparação. Quando Roma já não temia os seus inimigos os poços foram numerados e identificados para melhor gestão e manutenção. A conduta de água ( rivus ou specus) era fechada e em pedra e normalmente era suficientemente larga para permitir a um homem andar facilmente dentro delas e assim permitir as inspecções e limpezas necessárias.
No centro das cidades eram construídos depósitos ( castellum) e pequenas canalizações de distribuição ( fistulae) até aos cidadãos que possuíssem contrato de fornecimento.
A utilização indevida da água publica era severamente punida. Já eram utilizadas bombas de elevação de água e válvulas de segurança e já existia toda um industria de fornecimento de serviços e materiais de canalização.
As cidade romanas utilizavam uma quantidade enorme de água corrente. Como não havia torneiras a água corria sempre a um débito constante.
O engenheiro romano Vitruvio ( 90-20 aC) expôs o sistema de distribuição de água em três reservatórios no seu tratado de arquitectura ( De architectura): o primeiro abastecia as fontes publicas em água potável, o segundo abastecia as termas que contribuíam para a higiene publica e as receitas do Estado, o terceiro, que só funcionava com o excedente dos outros, servia para abastecer as habitações particulares.
Este facto testemunha o valor que os romanos davam ao dever cívico, facto que garantia aos políticos um permanente apoio popular.
A abundância de água permitia às boas famílias possuir água corrente em casa, termas privadas e casas de banho.
O sistema de descargas de água das termas permitia limpar o sistema de esgotos ( cloaca máxima) e assim contribuir para a higiene publica.

Os teatros e anfiteatros
Uma das obras que nos vem ao espírito primeiramente quando pensamos no mundo romano é o Coliseu de Roma, construído entre 69-81 pelo imperador Titus.
A maior parte dos teatros e anfiteatros construídos pelos romanos foram-no durante o Imperium. Durante a Republica os senadores tinham medo que, ao construir lugares permanentes de reunião se pudesse estar contribuir para a discussão politica sem controlo entre as massas populares.
Convém fazer a distinção entre teatro e anfiteatro. Os dois foram construídos para substituir os locais temporários de representação. As cidades da Grécia já possuíam estes locais e foi nessas tradição helenística que os romanos se inspiraram.
Se a forma fosse semicircular chamava-se theatron que circundava uma orquestra e um muro de cena ( skené) para proteger os actores nas suas mudanças de indumentárias.
O anfiteatro era diferente e surgiu na evolução natural da arena sendo o palco central completamente rodeado de bancadas para os espectadores. A própria palavra é definidora do conceito: anfi /dois/ teatros. Os romanos utilizavam-nos para os espectáculos das execuções, de caça e de gladiadores.
O primeiro anfiteatro publico foi construído em Pompeia, na colónia de veteranos de Sylla em 80 aC.

O urbanismo
A planificação urbana não nasceu com os romanos. Exemplos de rigor urbanístico são- nos dados sistematicamente em todas as civilizações mediterrânicas tais como a egípcia, a micénica e a grega. Ela acabou por ser sistematizada pelo arquitecto grego Hippodamos de Mileto que propôs um plano urbano em quadrado em redor de uma praça de mercado central. Verdadeiro teórico da habitat urbano Hippodamos criou as bases do planeamento urbano.
Assim que fundavam as novas colónias, os romanos baseavam o seu planeamento urbano no modelo do campo militar, ou castrum. Os muros da cidade eram construídos e edificados em quadrado. Duas ruas principais ( viae principae) dividiam o quadrado em eixos norte-sul (cardo) e este-oeste (decamanus). No interior dos eixos formavam-se blocos de habitação ( insulae). No canto de cada ínsula, uma fonte publica fornecia água do aqueduto. Cada quarto da cidade tinha a sua função especifica e os bairros mais pobres por vezes eram dissimulados para não serem vistos pelos cidadão mais ricos.
Em Roma, o plano inicial da cidade já tinha sido definido pelos reis etruscos . O urbanismo romano aqui, consistiu em ir construindo edifícios públicos de acordo com as necessidades. Os diversos Fóruns eram espaços ao redor dos quais eram construídos os edifícios públicos.
À medida que os romanos “romanizavam” as cidades estrangeiras, construíam fóruns e outro tipo de construções que incarnavam a identidade romana. Em termos de codificação da construção, da renovação, da regulamentação e da regulação da circulação urbana e viária, a planificação urbana começará apenas no fim da Republica e sobretudo na época do Imperium. Este tipo de planificação urbana só era possível com uma autoridade forte, facto que não foi possível durante o período da Republica.


Construir para a vitória
Os romanos eram reputados engenheiros e tinham um Know-how extraordinário também no domínio da construção militar. As legiões romanas tinham os seus próprios engenheiros, construtores e pedreiros. Os seus campos, os seus trabalhos de terraplanagem, os seus materiais de cerco e as sua catapultas eram lendários. Outro factor importantíssimo era a capacidade das legiões em construir sob condições muito difíceis e em prazos muito curtos.
Os campos militares eram construídos para proteger os soldados e servir de base de defesa mesmo durante o movimento de tropas. Possuíam uma forma standard de maneira a que todos se pudessem referenciar sem dificuldade. Os soldados estavam estacionados em função da sua hierarquia, divididos pela via principalis. Todos os campos tinham, a forma de um quadrado circundado por um fosso de protecção ( fossa). Os maiores eram dotados de torres de vigia. Entre as tropas e os muros existia um espaço de sessenta metros chamado intervallum. Ao centro localizava-se a tenda do general, o praetorium, flanqueados pelas tendas dos centuriões e do espaço para o Fórum. Assim que os acampamentos se tornavam permanentes passavam a existir celeiros para os abastecimentos, hospitais e oficinas de reparação. Muitos campos militares das províncias transformaram-se em cidades à medida que os colonos se estabeleceram ao redor dos acampamentos.
O campo romano ( castrum) deixou marcas na toponímia de toda a Europa, como nas localidades com o nome Castro em Portugal ( ex: Castro-Marim), com o nome Châtres em França e com a terminação –caster em Inglaterra.

Material de guerra
Quando atacavam uma cidade, os romanos cercavam a cidade e construíam uma fossa para impedir os abastecimentos e a fuga dos inimigos. Este perímetro de cerco podia ter vários quilómetros. Logo após tentavam destruir as muralhas do inimigo: os sapadores entravam então em acção protegidos por protecções em madeira (testudo). As catapultas eram peças de artilharia tão imponentes como eficazes; haviam de dois tipos: a ballista que atirava flechas em fogo, e a onagre que atirava pedras. César mandou também construir muralhas em madeira portáteis mais altas que qualquer existente até aí de maneira a permitir que os legionários pudessem atirar e entrar sobre as muralhas da cidade sitiada.
Com esta sofisticação e material militar os romanos conseguiam quase sempre conquistar as cidades que pretendiam.


Referências Bibliográficas :
1 GRIMAL, PIERRE (1999) : « O Império Romano ». Lisboa, Edições 70

domingo, 11 de janeiro de 2009

A arte e a literatura da antiguidade grega

« Quanto hoje sabemos sobre a Cultura Grega e Latina chegou até nós através de um longo e complexo processo(…) Essas vias são fundamentalmente duas, a arqueológica
( cientificamente explorada a partir do sec. XIX) e a literária (…) » 1

Nesta dissertação irão ser abordados alguns dos grandes momentos da literatura e da arte da antiguidade grega através de referências aos principais autores e textos. Sublinhar-se-á também a fascinação dos gregos pelo poder da palavra e como é que os ideais gregos serviram de modelo às grandes obras-primas da arte e da literatura.
A contribuição dos gregos relativamente à arte e literatura é sem duvida uma das mais importantes e significativas da história da humanidade. A herança dos gregos ao nível artístico e literário foi e é uma referência canónica de base estética para todas as criações artísticas. Da poesia à prosa, da epopeia ao epigrama, da ode à retórica, da tragédia sublime à comédia hilariante, os gregos inventaram e desenvolveram a maior parte das formas literárias ocidentais. Na arte e literatura o seu talento transcendeu tudo o que até esse momento tinha sido concebido: forma, proporção e equilíbrio foram as características essenciais que serviram de modelo e referencial de cópia e inspiração em todos os séculos posteriores.

A poesia
A origem da literatura assenta na palavra poética. Primeiramente orais, as formas poéticas formam a base da literatura primitiva séria: textos religiosos, epopeias, genealogias. De inicio principalmente vocacionada e relacionada com acontecimentos extraordinários ou sagrados, a poesia grega era considerada uma forma de inspiração divina, enquanto a prosa era reservada a questões mais triviais e normais.
Para os gregos a mais importante forma literária era poesia épica e lírica e o teatro, podendo este ser tragédia ou comédia.
Uma pequena nota para o facto de que a poesia antiga não era articulada com base na rima mas na métrica que era construída por sílabas longas ou breves (duas breves igualam uma longa). O tempo necessário para pronunciar um som determinava o seu comprimento.
A poesia épica
Os poemas épicos são longos textos baseados numa métrica bem definida, o chamado hexâmetro dactílico; um pé dactílico é composto de três sílabas, longa-breve-longa; o hexâmetro é apenas uma medida de seis pés.
Estes poemas cantaram lendas tradicionais chamadas ciclos ou epopeias, que continham episódios emblemáticos da história do povo grego. Muitos destes episódios mesmo tendo uma base real eram sempre abordados numa perspectiva mitológica.
Poemas épicos como a Ilíada e a Odisseia pertencem ao ciclo troiano. As lendas tradicionais referidas exploram e dissertam sobre os momentos chave da História de um povo e tentam responder a muitas questões de natureza existencial e escatológica.
As epopeias clássicas foram construídas à volta de personagens heróicas e onde os seus actos e principalmente as suas escolhas serviram de modelo e referencia cultural e cívica em autênticos exemplos modelares de vida. Os ciclos épicos cobrem toda a história mitológica de cidades como Tebas ou Micenas e contam os percursos heróicos de Hércules, Teseu, Perseu ou Jasão.
A literatura grega começa com as duas grande epopeias do ciclo troiano, a Ilíada e a Odisseia. Estas obras foram passadas da oralidade à escrita cerca de 750 aC. Quer elas sejam ou não obra de um ou múltiplos génios, o nome de Homero é desde sempre a referência literária ocidental por excelência. O debate sobre estes textos épicos é ainda actual e podemos afirmar que são neles que nasce a literatura ocidental.
Assim, para compreender toda a cultura grega é necessário desde logo ler estas duas magnificas obras.
A Ilíada desenrola-se no décimo ano da guerra de Tróia. O texto começa pela querela que opõe o chefe dos gregos Agamémnon e o herói Aquiles. Este retira-se da batalha que provoca a derrota dos gregos contra os troianos liderados por Heitor.
Não obstante todos os pedidos, este ultimo recusa retomar o combate mas para que os gregos não percam a face autoriza o seu amigo Pátroclo a combater por si. Heitor mata Pátroclo e Aquiles retoma o seu lugar e o combate numa fúria sangrenta. Aquiles mata Heitor e profana o seu cadáver que provoca a vinda da mãe enviada pelos deuses que, em conjunto com o pai de Heitor, o rei Príamo, suplicam a Aquiles que termine tal profanação.
Aquiles aceita enquanto o rei Príamo leva o cadáver do filho para exéquias dignas de um herói. O destino e a morte, a responsabilidade, o valor da vida a honra, a glória, a amizade e o amor estão perfeitamente ligados nesta obra extraordinariamente bela.
A Odisseia pertence à categoria das epopeias apeladas Nostoi ou Regressos que conta o regresso dos heróis gregos após a guerra de Tróia. É a história de Ulisses, rei de Ítaca, que no seu regresso a casa com os seus homens vai viver uma série de aventuras fantásticas nomeadamente uma viagem ao país dos mortos. Azar e más decisões custam-lhe o seu barco e deixam-no naufragado e prisioneiro da ninfa solitária Calipso na sua ilha. Mas os deuses apoiados por um bom povo de marinheiros ajudam-no a regressar a casa onde encontra a sua mulher Penélope, o seu filho Telémaco e toda a sua criadagem ameaçados por um grupo de pretendentes que já consideravam Penélope já viúva e assim pronta a casar novamente. Disfarçado de mendigo, Ulisses conspira com o seu filho e com a ajuda de Athéna massacra todos os pretendentes e reencontra Penélope.
Mito, epopeia e lenda misturam-se numa história inquietante e por vezes extremamente humana nas escolhas e observações dos heróis, nas suas responsabilidades e sobretudo na sua perseverança.
Outras epopeias existiam na época de Homero mas infelizmente não chegaram aos nossos dias mais do que pequenos fragmentos e citações de outros autores. Além destas epopeias convém referir “Os Argonautas”, de Apolónio de Rhodes do sec. III aC que conta a história de Jasão e dos Argonautas à procura do Tosão de Ouro.
Os hinos hesiodicos e homéricos
Outra grande figura da literatura grega primitiva é o poeta Hesíodo (700 aC) que redigirá dois grandes poemas, a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. Era uma personagem austera e pessimista sobretudo devido às incidências da sua vida pessoal.
A Teogonia conta o nascimento dos deuses e a história de Prometeu roubando o fogo, o que provocou a fúria dos deuses que criam Pandora, a primeira mulher na mitologia grega. Sendo um resumo de muitas e ancestrais tradições a Teogonia relembra que Zeus e a justiça triunfam sempre no final.
Os Trabalhos e os Dias é um poema didáctico sobre o trabalho. Após ter lembrado a Perseu que cada indivíduo precisa de trabalhar para viver, Hesíodo descreve em pormenor os trabalhos agrícolas e a sua razão de ser. Nesta extraordinária obra é descrito também quer o mito de Pandora quer as cinco idades da vida.
Hesiodo também escreveu uma série de outros hinos muito ao estilo de Homero, por isso chamados hinos homéricos.
A poesia lírica
Os gregos criaram um largo reportório de poesias destinadas a serem cantadas e acompanhadas de músicas e danças: é o que se chama a poesia lírica (para ser acompanhada por uma lira) que tem por objectivo a procura da musicalidade das palavras e a transmissão de um ideal sublimado nessas mesmas palavras.
A poesia lírica era um elemento muito importante da cultura aristocrática e celebrava ao mesmo tempo a grandeza e as duvidas dos heróis.
A ode
É uma forma mais antiga da poesia lírica mas também considerada a mais nobre. É ao mesmo tempo canto e celebração.
Píndaro foi um dos grandes poetas líricos gregos e ficaram famosas as suas odes aos vencedores dos jogos atléticos (ode à vitória).
A elegia
Trata-se de um poema recitado com acompanhamento musical mas não cantado. Os poemas elegíacos eram a forma mais popular de poesia do ponto de vista do público. Um poema elegíaco muito curto chama-se um epigrama

A poesia dramática
Formas muito célebres do teatro grego, a tragédia e a comédia evoluíram a partir da poesia coral que era cantada e dançada nas festas agrícolas. Com o tempo os poetas desenvolveram diálogos para contar histórias em sincronia com os cânticos e as danças.
As comédias e tragédias gregas mais célebres foram escritas no decurso do sec.V aC.
Elas eram objecto de autênticos concursos nas festas dionisíacas. Durante essas festas que celebravam o deus Dionísio, cada dia um poeta trágico subia ao palco dum teatro ao ar livre onde centenas de pessoas se juntavam para o ver montar duas ou três tragédias. No fim das festas um júri decidia o vencedor em cada categoria.
As comédias e as tragédias clássicas não foram escritas para serem eternas mas apenas para serem representadas uma só vez especialmente para o povo de Atenas. Mas o facto de abordarem temas universais de uma forma literária extraordinária fez muitas delas resistirem à poeira dos séculos.
A tragédia
Uma tragédia é uma peça que trata do sofrimento humano. Este sofrimento pode ter origem em muitas fontes: falta de conhecimento, arrogância, destino, consequências involuntárias ou simplesmente azar. Para a personagem torna-se claro que não é possível escapar ao sofrimento. As histórias eram normalmente retiradas de ciclos épicos ou momentos históricos particularmente importantes como em “Os Persas” de Ésquilo.
As tragédias comportavam um máximo de três actores\oradores e um coro de doze pessoas que dialogavam, cantavam e dançavam. Alguns figurantes podiam participar dançando em papéis mudos.
A representação das tragédias era sempre feita em grupos de três e no fim era costume de apresentar uma pequena peça satírica sobre um tema similar onde criaturas semi homens, semi bodes, desempenhavam o principal papel (sátiros).
Ésquilo (cerca de 525-456 aC)
É o primeiro grande tragediólogo de Atenas. Introduziu o uso de um segundo actor e escreveu mais de setenta tragédias tornadas célebres pela sua profundidade e grandeza; retratava a sempre difícil relação entre o homem e os deuses.
Só chegaram até aos nossos dias poucas tragédias de Ésquilo donde a mais célebre é Orestes, ciclo compreendendo as três peças Agamémnon, As Coéforas e as Eumênides, a única trilogia que sobreviveu ao vento dos séculos.
Sófocles (cerca de 496-406 aC)
É sem duvida o poeta trágico antigo mais importante e sem duvida o tragediólogo por excelência conhecido por todo o mundo depois de Aristóteles. Escreveu mais de cem peças sendo "As Tebanas" as mais conhecidas (tratam da família de Édipo).
Eurípedes (cerca de 485-406 aC)
Foi o mais radical dos três dramaturgos e as suas peças desafiaram as convenções da cena cultural ateniense ao valorizar a presença feminina e ao mesmo tempo colocar em causa os valores tradicionais utilizando uma argumentação retórica. Entre as mais célebres estão Medeia, As Bacantes e Hipólito.
A comédia
A produção da comédia antiga grega refere-se a produção ateniense cómica do sec.V ao início do sec. IV aC. Estas peças eram representadas ao mesmo tempo e nas mesmas festas das grandes tragédias. Utilizavam geralmente um registo fantástico e eram dotadas por vezes de um humor obsceno o que, aliado a um registo agressivo e a uma afrontação chocante, faziam das comédias um género também muito popular.
As únicas comédias que nos chegaram foram de Aristófanes e a mais popular a Lisístrata retrata um cenário onde as mulheres de Atenas fazem uma greve de sexo com os seus maridos guerreiros para acabar com a guerra entre Esparta e Atenas.

O poder da prosa
A poesia grega era como que a autoridade em termos literários porque estava ligada à tradição e dizia-se que a sua produção provinha da inspiração divina. Desde os primeiros dias da escrita que a prosa era usada apenas para listas, regras e outras questões materiais.
Aos poucos os gregos começaram a dar-lhe um pouco mais de poder ao libertarem-se dos constrangimentos da tradição literária. Assim, a prosa transforma-se a forma privilegiada das interrogações humanas fundadas na autoridade da razão e da experiencia: historia, filosofia e retórica. Por fim, a prosa acaba por ser também veículo da ficção literária.

O passado dramático
A história grega emergiu das suas origens épicas na altura da representação das grandes tragédias e onde a retórica se desenvolveu e floresceu. Os autores utilizavam as convenções da epopeia, do teatro e da retórica para criar textos históricos e literários.
Heródoto (cerca de 480-420 aC)
Estuda e explica as causas e consequências das guerras Médicas. Intitulou a sua obra como Historia e assim tornou-se o pai da história não deixando também a sua obra de possuir características épicas e dramáticas.
Tucidides (cerca de 460-400 aC)
Participou na guerra do Peloponeso e descreve-a nos seus escritos sendo considerado o pai da história científica. O seu estilo austero e conciso é a antítese do estilo de Heródoto.
Histórias cada vez mais simples
A prosa transforma-se também igualmente no meio de expressão privilegiado de outras formas literárias como as biografias, as memórias e os tratados. A biografia é uma evolução natural do texto histórico, reflexo do interesse dos gregos pelos seus grandes homens. A vida destes personagens ilustres é mostrada como exemplo e a sua biografia faz o elogio das suas qualidades, mostrando bem como elas podiam servir a cidade.
Xenofonte (cerca de 430-354 aC)
Foi o primeiro escritor biógrafo. Era um aristocrata ateniense ecléctico e que foi banido da cidade passando o final dos seus dias em Esparta. As suas obras históricas incluem as Helenísticas e a biografia idealizada de Sócrates.
Plutarco (cerca de 46-120 dC)
Professor e diplomata, Plutarco foi um autor grego profícuo que escreveu mais de duzentas e setenta obras maior parte delas já sobre o Império Romano. Exprimiu assim o seu ponto de vista filosófico, religioso, cientifico, político e literário.

Os diálogos filosóficos e a procura da verdade
Sócrates (cerca de 469-399 aC) é uma das figuras principais da filosofia grega mas não deixou nenhum texto escrito. Foi o seu discípulo Platão (428-348 aC) que referenciou a sua filosofia nos seus diálogos filosóficos. Nestes diálogos, Sócrates conversa com personagens influentes em que os desafia e enfrenta. Estes textos brilhantes conseguem transcrever bem a sua maneira de pensar e a sua filosofia.
As obras mais conhecidas pela sua qualidade literária e filosófica são Euthyphron, Apologia de Sócrates, Fédon (onde nesta se trata o processo de condenação à morte de Sócrates), Banquete (onde Sócrates discute a natureza da beleza e do amor com o poeta Aristófanes e o aristocrata renegado Alcibíades) e a República (onde Sócrates discute a natureza da justiça e a sua influencia sobre os seres humanos e a cidade ideal).
Platão é também célebre pela criação e utilização de mitos (Atlântida) e metáforas (alegoria da caverna) na filosofia.

Persuasão: retórica e retóricos
Os gregos colocaram a palavra ao nível da honra. Algumas das obras mais importantes mostraram personagens que falavam, o que demonstrava também um certo fascínio pela linguagem enquanto veículo de expressão de pensamentos e emoções do orador.
O talento cultivado da eloquência era admirado desde a Ilíada. Entretanto, com o desenvolvimento dos tribunais e assembleias democráticas no sec.V aC, a comunicação eficaz foi condição indispensável para participar e ter sucesso nos negócios públicos.
Os professores começaram a ensinar a arte da persuasão e da eloquência. O estudo da teoria e prática da comunicação (oral e escrita) é conhecido por retórica. Esta arte perpetuou-se com os romanos e foi depois recuperada na Idade Média onde já entrava novamente no ensino das escolas monásticas.
Os discursos retóricos eram igualmente pronunciados durante cerimónias públicas como espectáculos ou demonstrações do génio retórico.

As artes
Os gregos produziram obras de arte que fascinaram a admiração ao longo dos séculos. Essas obras fornecem-nos preciosas informações sobre a cultura da Grécia antiga.
Vasos e frescos
Os dados técnicos e artísticos fornecidos pela cerâmica são extremamente importantes e úteis para compreender a cultura grega antiga.Utiliza-se a cerâmica para datar sítios arqueológicos e determinar as influências culturais e as rotas comerciais. A beleza e a concepção desses recipientes e os seus motivos e ornamentos abrem uma janela estética sobre a criatividade de uma civilização. Neste aspecto, a cerâmica antiga é testemunha do desenvolvimento histórico da Grécia antiga e normalmente a única fonte que dispomos para reconstituir a sua vida quotidiana.
A cerâmica grega conheceu três grandes fases, caracterizadas por estilos diferentes. O período geométrico estende-se desde o período obscuro até ao período arcaico; os vasos são ornados de motivos geométricos (bandas, semi círculos e círculos) que se afinam com o evoluir dos séculos; progressivamente os gregos introduzem as representações de grupos de animais. O período Coríntio de figuras negras data do meio do período arcaico; a cidade de Corinto desenvolveu um estilo bem característico que depois foi depois desenvolvido pelos atenienses; a cerâmica de figuras negras era muito teatral e como as obras literárias do período arcaico, os temas mitológicos e épicos são o principal motivo desenhado. O período de figuras negras inicia-se no fim do período arcaico. São os atenienses que desenvolvem este método, o que permitiu a expressão artística e um melhoramento do traço e dos detalhes. Os motivos mitológicos continuam sendo o referencial mais importante mas encontramos também cenas de homens e mulheres de todas as classes sociais. A representação humana é assim largamente numerosa neste estilo.
Ao mesmo tempo que a arte se associava a uma contínua representação humana a cerâmica começava a ser limitada para representar os indivíduos e as suas emoções.
É assim que, gradualmente as representações artísticas, começam a ter como suporte os frescos e as esculturas.
Nenhum fresco logrou chegar até nós mas chegaram descrições das suas expressões realistas e profundas como base da sua expressão artística.
A escultura
Os trabalhos escultóricos gregos surgem por influencia egípcia e são sobretudo, numa primeira fase, estátuas estilizadas de homens e mulheres jovens (kouros e kore), representados nus, em pé e com a perna esquerda à frente. Este estilo também é visível nos altos e baixos relevos de alguns templos onde são representadas cenas essencialmente mitológicas.
Do meio do sec.V aC até ao sec.IV aC a escultura grega conhece um período de grande criação. Os artistas desenvolvem novas técnicas para trabalhar o mármore e o bronze que lhes permitem criar obras que atingem os referenciais da cultura e da arte grega: harmonia, equilíbrio e proporção. O movimento e a tensão dos sujeitos eram representados de uma maneira quase perfeita. Este estádio da escultura grega permitiu a produção de grandiosos baixos relevos e estátuas criselefantinas ( ouro e marfim) como nos templos de Zeus em Olímpia e o Pártenon em Atenas.
Durante o período helenístico a escultura grega torna-se mais realista. Nesta época foram produzidos belos exemplares de altos dignitários.
Uma referencia final para um dos maiores escultores gregos e director de arte na construção do Pártenon, Fidias ( 490-430 aC). Criou esculturas grandiosas, das mais célebres da Antiguidade, entre as quais a estátua de Zeus no templo de Olímpia, considerada um das sete maravilhas do mundo.
Referências Bibliográficas :
1 MARIA HELENA,ROCHA PEREIRA (2006) : « Estudos de História da Cultura Clássica ». Fundação Calouste Gulbenkian

Monty Python and the Holy Grail


“Criticism of any comedy as apparently random as Monty Python troupe`s always runs the risk of being caught up in the very absurdity it analyzes. Professorial seriousness and pompousness were always among the troupe´s favorite targets, and when writing about their comedy it is hard to avoid sounding exactly like one of the hapless academics they so love to skewer ” 1


A essência da sátira dos Monty Python numa perspectiva cavaleiresca

1. Introdução

Ao iniciar a preparação deste trabalho sobre o filme“Monty Python and the Holy
Grail”2 deparei-me com a mesma dificuldade que qualquer analista ou crítico poderá ter perante as obras de Monty Python: nesta, o humor e a sátira são utilizados como armas certeiras perante conceitos, estigmas, arquétipos e estereótipos de uma sociedade que vive da idolatração conceptual de determinado tipo de valores.
Monty Python´s Flying Circus revolucionou quer o teatro (pois foram primeiro uma trupe de teatro) quer a sátira e a performance humorística do século XX, principalmente após a sua famosa série televisiva para a BBC nos anos setenta e que os deu a conhecer a todo o mundo.
Monty Python´s Flying Circus conseguiram através das suas performances incorporar a maior parte dos aspectos e características do teatro moderno como sejam o realismo, surrealismo, futurismo e sobretudo a assumpção da verdadeira essência do Teatro de Absurdo, sendo que os Monty Python são em larga medida os herdeiros de Beckett e Ionesco. Em qualquer sketch dos Monty Python o absurdo surge-nos em flashs precisos e incisivos.
A loucura metódica dos Monty Python baseia-se na performance individual e teatral de seis homens: Graham Chapman, Eric Idel, Michael Palin, Terry Jones, John Cleese e Terry Gilliam.
Mas foi só após o verdadeiro fenómeno global televisivo que foi Monty Python´s Flying Circus que a arte dos Monty Python (MP) passou a ser verdadeiramente conhecida e analisada.
Também é necessário referir que a sua arte e o seu humor cortante não são acessíveis a todos os públicos, sendo que uma das características dos MP é a sua essência e consistência narrativa e de conteúdo o que exige muito mais do receptor.
Os seus motivos principais (alvos ou objectivos) giram à volta da satirização da sociedade, do governo e da política e sobretudo da vida do dia a dia. John Cleese, um dos ideólogos dos MP, afirmou: “ uma coisa que conseguimos foi colocar no écran alguns arquétipos que as pessoas reconheceram independentemente da sua cultura ou geração”.
Ficaram para a história o famoso e non-sense “ The Silly Walk” como símbolo inteligente e sofisticado de um absurdo total num resultado de harmonia estética e carácter incisivo.
As performances e os sketches dos MP nunca deixaram de ser teatrais apesar de terem sido concebidos para televisão ou cinema. A sua influência no teatro e humor moderno é considerada ao mesmo tempo canónica, anárquica e de avant-garde e MP passou a ser sinónimo de humor satírico e de comédia ingénua.
Os Monty Python também fizeram três filmes: “The Life of Brian”, “The Meaning of Life” e “Monty Python and the Holy Grail”. É este último que vamos analisar com mais detalhe.


Bom Filme!


2. Paródia medieval ou surrealismo?
A paródia é a arte de imitar a literatura como forma artística. “Monty Python and the Holy Grail” é uma das grandes paródias populares de todos os tempos adaptadas à sétima arte.
Este filme é definitivamente, o filme mais sofisticado dos Monty Python pois consegue reinventar conceitos académicos e de análise critica, o que coincide com a nova abertura dos historiadores e críticos de arte perante a Idade Média. Esta nova maneira de olhar a Idade Média é por si só, também resultado e consequência de novas perspectivas de análise como a que os Monty Python fizeram.
Grande parte do filme é feito parodiando os clichés de cavalaria que são familiares ao espectador comum. Já o estudante universitário e entusiasta pelas questões da Lenda Arturiana referencia o filme, como uma lista de convenções de Cavalaria e do Amor Cortês sucessivamente parodiadas.
O mundo de “Monty Python and the Holy Grail” é vagamente medieval pois não faltam cavaleiros, reis, batalhas e muita lama, mas também surreal pois aparecem também polícias do século XX.
A paródia ao Rei Artur e aos cavaleiros da Távola Redonda é quase perfeita, pois alia a um sentido estético sarcástico e incisivo a um perfeito conhecimento da essência literária dos romances de cavalaria e do amor cortês.

3. A ausência de cavalos num filme de cavalaria
O primeiro grande espanto que temos ao iniciar o visionamento do filme é a cena inicial em que o Rei Artur no meio de um típico nevoeiro britânico, parece cavalgar um cavalo. Quando a imagem se aproxima temos consciência que Artur apenas saltita enquanto anda e que atrás, o seu escudeiro faz o barulho do cavalo com duas cascas de coco. Esta cena hilariante no início transforma-se num standard do filme e pouco depois deixamos de prestar atenção ao ridículo e acabamos por aceitar que eles estão mesmo cavalgar.
Logo após esta cena inicial, o Rei Artur aproxima-se de um castelo e pergunta ao vigia se quer juntar-se aos cavaleiros da Távola Redonda; depois, inicia um diálogo surrealista com o mesmo vigia (francês) em que se discute como as andorinhas do mar poderão ter conseguido trazer os cocos para as ilhas britânicas já que o coco é um fruto tropical.
Esta cena, como muitas outras, apenas nos serve para lembrar o quanto estúpida a vida real pode ser, quando o ridículo se transforma em norma. Este facto é ainda mais evidenciado pela nossa recusa em admitir o ridículo e o absurdo das nossas vidas rotineiras do dia-a-dia.
O exagero é outra das características potencializadoras do humor dos Monty Python. Na cena seguinte, muito realista, um homem com uma carroça cheia de corpos grita “ Bring out your dead” numa imagem perfeita aos tempos da peste na Europa; todos estão mortos ou a morrer excepto os colectores de corpos.

4. Subtileza filosófica
A cena seguinte parodia extraordinariamente bem o fenómeno da caça às bruxas. O Rei Artur entra numa pequena vila habitada por idiotas onde está a decorrer um processo de acusação de bruxaria por um cavaleiro, a uma mulher. O humor atinge um sentido quase filosófico quando Artur é questionado pelos idiotas como é que se determina se uma mulher é bruxa ou não.
Por dedução lógica surreal, chegam todos à conclusão de que só comparando o peso de um pato e da mulher se pode dizer se ela é ou não bruxa: se ambos flutuam na água é porque a mulher é bruxa.
A subtileza filosófica vai mais longe ao ser evocado pelo Rei Artur e pelo cavaleiro o conceito de lei e do que ela diz para se fazer. Assim, se a mulher é acusada de ser uma bruxa, a lei é clara e como tal a mulher deve ser mandada ao lago com pesos nos pés e como flutuará de qualquer maneira, ela será sempre condenada.
O ridículo apresenta-se no seu expoente máximo quando Artur convida o cavaleiro a juntar-se à Távola Redonda devido à sua inteligência.
A conclusão subtil desta cena é uma critica ás leis da nossa sociedade que têm uma base moral forte. As bruxas são más e devem ser punidas por essas leis apesar da maioria das pessoas não acreditar em bruxas. O sistema legal e judiciário ficou demasiado complexo principalmente devido ao peso religioso que contamina o poder legislativo. A lei é a lei e o resultado é que os advogados dos poderosos conseguem descobrir falhas no sistema para permitir aos infractores escapar.


5. Incongruência e ironia pragmática
Num momento do filme, os cavaleiros dividem-se para melhor atingirem o objectivo da procura do Graal, depois de Deus, numa versão barata e kitsch de animação, lhes ter aparecido no céu.
Sir Robin é acompanhado por um menestrel e pelos seus escudeiros numa alegre procissão onde se canta a bravura de Robin e onde é enaltecida a sua coragem. Mas quando Sir Robin enfrenta o gigante das três cabeças e ………foge, a musica muda para
“Brave Sir Robin ran away”. Robin diz constantemente até final do filme para eles se calarem. Esta cena repete-se ao longo do filme com outras personagens onde em vez de se ouvir os bravos cavaleiros a gritarem “attack” ouve-se “ run away, run away”.
Uma outra cena simbólica é quando Sir Launcelot (sic) encontra uma nota numa seta que atingiu o seu escudeiro e que ele julga ser de uma donzela em perigo num castelo. Sir Launcelot, que deveria ser um dos heróis da história, carrega contra o castelo onde apenas estão convidados de um casamento desarmados e guardas que não oferecem resistência, Sir Launcelot, depois de chacinar a quase totalidade dos convidados é convidado a beber um copo com o pai do noivo que tinha enviado a seta com a nota.
Este hino à violência gratuita é muito mais do que aparenta ser e numa primeira apreciação indica-nos o que somos ou o que conseguimos fazer quando o medo toma conta de nós. A actualidade desta cena é tanto maior se a analisarmos perante os factos que levaram à invasão e destruição do Iraque à procura de armas de destruição maciça… que afinal não existiam.
Outra paródia à violência e sobretudo às lendas arturianas é feita quando o cavaleiro negro luta com o Rei Artur pelo direito de cruzar a ponte. Depois de cortar os braços do cavaleiro negro este continua a lutar até que lhe são cortadas também as pernas e este continua vigorosamente a tentar lutar e a provocar o Rei Artur.
Outra cena simbólica é quando os cavaleiros entram na gruta de Caerbannog onde supostamente o Graal está escondido e guardado por uma criatura diabólica e selvagem, um……. coelho branco capaz das maiores atrocidades e que mata metade dos cavaleiros numa parodia às lutas contra os dragões e à violência da Idade Média. Só com o recurso à granada sagrada, com instruções do livro sagrado, o terrível monstro foi destruído. Esta cena demonstra o quanto estúpida poderá ser a rigidez religiosa e o quanto a vontade de apenas lutar sem preparação pode levar a situações caricatas determinadas pelo medo e pelo instinto de sobrevivência.
A cena clássica e mais emblemática do filme é aquela da travessia da ponte da morte que atravessa o abismo do perigo eterno. A ponte tem um guardião que protege a ponte e a sua travessia para o outro lado onde está o Graal. Esta cena é uma paródia ao teste que é sujeito Percival (Death of Arthur, Thomas Mallory, c 1410-71) mas em vez de lhe ser perguntado qual é o segredo do Graal é-lhe perguntado qual é a sua cor preferida.
Na essência, a questão é a mesma, e só respondendo a verdade e demonstrando que vale a pena procurar e lutar por ela é que o Graal poderá ser atingido. Todas as pessoas são diferentes e a conclusão simples: teremos de viver sendo verdadeiros para nós mesmos. Não poderemos fingir que o azul é a nossa cor preferida se ela é o verde.
Uma anotação final para o castelo onde poderá estar o Graal, o castelo que aparece e desaparece e que é uma referencia ao castelo do rei-pescador da lenda de Percival de Chrétien de Troyes. Assim quando os guardiões do castelo assumem a propriedade do Graal é óbvio que o defendem contra os heréticos ingleses que negam a Santa Madre Igreja de Roma. Tudo assume um sentido…… completamente genial! 3
O filme não acaba, apenas é interrompido, numa cena em que é representada uma rusga dos policias do século XX e em que o rei Artur…….é preso.

6.Conclusão
Pretendeu este trabalho fazer uma pequena abordagem sobre esta verdadeira obra de referência do humor e da sátira do século XX. É claro para nós, que os Monty Python, não pretenderam fazer nenhuma abordagem ou critica moral sobre os temas medievais de cavalaria e do amor cortês. No entanto, é evidente o entusiasmo real da trupe dos MP por estes assuntos, pois só pessoas que gostem e conheçam efectivamente os temas podem parodiá-los aberta e conscientemente.
Para nós, foi uma oportunidade de analisar e conhecer uma abordagem diferente sobre os temas da cavalaria e do amor cortês.

7. Référencias Bibliográficas

1 HARTY, KEVIN J. (2002): “Cinema Arthuriana”, New York, McFarland

2 PYTHON, MONTHY (1974): “Monty Python and the Holy Grail”, Columbia Pictures

3PYTHON, MONTHY (1987): “Monty Python and the Holy Grail – The Strictly- Unofficial, more than fully annotated script”, Zombie Press