quinta-feira, 3 de julho de 2008

Paris nunca se acaba -A cidade de Paris e os diálogos artístico-culturais

“Les idées sont comme des êtres vivants. Elles naissent, elles croissent, elles prolifèrent, elles sont confrontés à des autres idées et elles finissent par mourir.
Et si les idées, comme les animaux, avaient leur propre évolution ? Et si les idées se sélectionnaient entre elles pour éliminer les plus faibles et reproduire les plus fortes comme dans le darwinisme ?
Dans Le Hasard et la Nécessité, en 1970, Jacques Monod émet l´hypothèse que les idées pourraient avoir une autonomie propre et, comme les êtres organiques, être capables de se reproduire et de se multiplier.
En 1976, dans Le Gène égoïste, Richard Dawkins évoque le concept d´idéosphère. Cette idéosphère serait au monde des idées ce que la biosphère est au monde des animaux.
Dawkins écrit : Lorsque que vous plantez une idée dans mon esprit, vous parasitez littéralement mon cerveau, le transformant en véhicule pour la propagation de cette idée. Et il cite à l´appui le concept de Dieu, une idée qui est née un beau jour et n´a plus cessé ensuite d´évoluer et de se propager, relayée et amplifiée par la parole, l´écriture, puis la musique, puis l´art, les prêtes la reproduisant et l´interprétant de façon à l´adapter à l´espace et au temps dans lesquels ils vivent. (…).
Du combat des idées dans l´idéosphère surgit notre civilisation. ” 1


“ Paris nunca se acaba”

A cidade de Paris e os diálogos artístico-culturais



A base deste trabalho final de Seminário é a cidade de Paris e de como ela se tornou eixo aglutinador de uma intelingentsia cultural e artística durante os últimos dois séculos. Verdadeira placa giratória de ideias, de escritores, de artistas, de intelectuais, Paris afirma-se durante o século XX como verdadeiro bouyllon de culture onde as ideias surgem e fervilham numa espiral de contaminação.
Irei concentrar-me essencialmente no século XX em alguma revisões sumárias de relações e movimentos, de lugares e de escritores, num cruzamento de conexões e referencias que habilmente nos conduzem pelo grande século dos intelectuais e dos artistas.
A viagem que proponho ultrapassa muito a expressão simples de dissertações pessoais e transporta-nos numa busca incessante pela essência da obra de arte e da verdade artística.
Paris é filha do Sena e do rei e segundo Paul Valéry, a cidade mais completa que possa existir no mundo.
Paris torna-se assim num eixo onde todas as energias criativas se fundem e onde está sempre presente uma espécie de “ideiosfera” propicia à produção artística.
Não será assim Paris a verdadeira obra de arte?

Boa Viagem!



Cidade de intelectuais \ Cidade de escritores
A minha cidade
As inscrições



“Ce pays est celui des écrivains, des penseurs, des poètes.”
Balzac


A centralização da vida cultural em Paris é uma característica francesa que contrasta com a tradição anglo saxónica de descentralização cultural e artística. Este facto tem implicações importantes e graves ainda nos nossos dias e poderá explicar parcialmente o fracasso cultural francês do ultimo quartel do século XX.
Mesmo assim, a importância de Paris ainda hoje se sente directamente na literatura e outras artes francófonas e indirectamente na literatura global, já que a produção artística e literária é tão só a soma de todos os livros já produzidos e lidos. Gilbert Durand na sua Teoria do Imaginário descreve que tudo o que se escreveu, escreve ou virá a ser escrito é condicionado por um numero reduzido de arquétipos e que o universo das ideias é limitado, constante e paralelo.

O primeiro livro que li sobre Paris foi “ Paris é uma festa” de Hemingway e foi através dele que me apercebi das minhas memórias escondidas de uma cidade que tinha acolhido o sonho da minha família mas que os condicionalismos revolucionários de 68 acabaram por desfazer. Habitávamos um humilde apartamento na Porte de Pantin e nessa altura os meus jogos eram mais infantis e triviais mas que incorporavam rotinas ainda hoje existentes como o passeio dominical ao Jardin du Luxembourg para bem manejar os barcos à vela no pequeno lago central.
O regresso ao Jardin foi bem através da pena de André Gide. “Quem teve a sorte de lá viver quando era jovem, depois Paris acompanha-o, vá para onde for, para o resto da vida.” 5
A imagem que Hemingway tão bem passou das suas experiencias parisienses são a prova escrita dos processos e dos lugares emblemáticos que ao serem descritos assumiram força de ícones e sendo assim, se transformaram eles próprios em processos de assumpção e de registo iniciático.

Estamos perante um lugar de inscrição positiva, dentro da concepção desconstrutivista de Jacques Derrida. Os registos e as impressões tocam desde sempre a literatura, no que ela tem de não canónico e não filosófico. A imaginação é assim. Mais do que um recurso de forma, uma ameaça para a verdade e para as ideias. Pablo Picasso lembrou-nos que a imaginação é memória e que sendo assim (e é assim!), o lugar de inscrição é o da ficção.
Assim, a ficção é um limbo de mediação, sendo aquilo que é e não é, ou que pode ser sem o ser; estamos perante os condicionalismos da dialéctica hegeliana e cuja não linearidade (ou será não-circularidade) resiste à participação e ao sistema enquanto identidade heterogénea que não se fecha.
A desconstrução só é então possível pela impossibilidade do sistema em se resolver e mesmo em existir.
Estamos sempre no “para além do lugar”, “ailleurs”, aliás também, numa singularidade cultivada que interrompe o registo da possibilidade.
É a inscrição que não se dilui e que através da metáfora, a escrita surge no lugar da ferida. É a dimensão catastrófica do pensamento de Jacques Derrida. 8


Paris
Motivo, eixo e catalisador

“O passado, dizia Proust, não só não é fugaz, como não sai do sitio. Com Paris passa-se o mesmo, nunca partiu em viagem. E ainda por cima é interminável, nunca se acaba.” 3
Como a literatura, Paris é também o diálogo entre o presente e o passado e uma ponte para o futuro.
Paris, como é óbvio, também é sujeito e motivo. Ao longo dos séculos foi pintada em frescos sociais impressionantes e foi quadro privilegiado de telas realistas e impressionistas. Cada pedra de Paris é também História Universal e basilar na construção da sociedade como a concebemos hoje.

A escrita de Paris e sobre Paris é antes demais uma maneira de inscrever o espírito e o pensamento: “ Lorsque j´écris ma pensée elle ne m´échape pas” , sublinhava Lautreamont nos Les Chants de Maldoror verdadeira obra prima inspiradora dos surrealistas; a Paris de Isidore Ducasse é obscura e inquietante bem à maneira do Spleen de Baudelaire e onírica e questionável à maneira de André Breton.
As colinas de Paris por serem únicas foram e são referencia farol na falsa planície de Lutécia. Se a butte Montmartre através do seu pitoresco atraiu uma panóplia de pintores como Géricault, Corot, Renoir, Van Gogh e Toulouse-Lautrec o parque Buttes-Chaumont cativou Aragon e Breton na sua procura da essência do quotidiano.
É evidente que lugares tão povoados de história e da História da Arte e da Literatura motivam opções, exponenciam dotes, elegem verdades e catalisam vínculos.
Ser artista é ser Paris e ser escritor é ser de Paris pelo menos uma vez na vida. Paris é ritual e instrumento, acessório e paisagem, placa e gare, Paris é Paris.

Regresso continuamente a Paris, nas minhas leituras, no meu estudo e nas minhas constantes viagens. Procuro talvez algo que não sou e talvez nem queira ser numa viagem errante pela arte e pela literatura, pelo meu passado e pelas minhas referencias.
Durante muitos anos a Gare de Austerlitz foi a ligação e o Sud- Express o transporte. Foi o recomeço de um amor efémero. A cartilha ainda não existia, o saber e a experiencia apenas iniciavam o seu acumular mas Paris revelava-se da mesma maneira que se tinha revelado aos já revelados e às referencias.
Nos começos de oitenta os Pirenéus eram ainda fronteira e em Paris sentia-se um outro mundo. Renzo Piano fazia nascer o Beaubourg e tentava-se o renascimento artístico de uma cidade que já tinha sido referencia para todas as outras.


Paris
Iniciação e exílio

A iniciação ritual está presente em todos os processos societários humanos desde a antiguidade até ao presente. Todas as sociedades praticam rituais. O ritual pode ser definido como o conjunto de sequencias simbólicas standards ou não standards, publicas ou privadas. Estamos no limite do sagrado e do profano e todo o ritual tem a ver com o cruzamento de fronteiras e da ultrapassagem de etapas.
Todos os processos rituais e iniciáticos são simbólicos e por vezes metafóricos.
Apesar da não assumpção pelas sociedades modernas dos rituais e sobretudo dos rituais iniciáticos, eles estão presentes nos mais pequenos pormenores da nossa vida. 2

Ser escritor é questionar o devir e testemunhar a humanidade; é ser eco e filtro do processo humano de relacionamento societário. Ser escritor é ter de conhecer e viver em Paris pelo menos uma vez na vida e pelo menos uma vez na vida ser de Paris.
As ideias e os processos multiplicam-se e contagiam em cada esquina e em cada café. Os processos verbais brotam de cada prédio e de cada pavé .
Escrever em Paris é sentir o ser humano universal na sua plenitude; em Paris um mundo inteiro converge numa multiplicidade de processos transmigratórios internos e externos. O mundo está em Paris e como tal, talvez se diga que Paris é o mundo.

Como Enrique Villa-Matas muitos outros escritores percorreram esse caminho iniciático de ir viver para Paris. 3
Esta procura de si mesmo proporcionou a confluência de centenas de escritores, artistas e intelectuais de todo mundo numa mesma cidade em diversas plataformas temporais e físicas mas criando laços eternos comunicantes na “ideiosfera”.
A multiplicação deste fenómeno iniciático permitiu à cidade adquirir estatuto de ícone e criar a própria necessidade de “ter de” “ para ser”.

A antologia literária de Paris é em si a antologia literária universal pelos motivos anteriormente explicados. A confluência de culturas, épocas, estilos e orientações permitem que a própria cidade seja referencial orientador.

Chegar a Paris para se viver e escrever pode-se rapidamente tornar num verdadeiro pesadelo mas é esse mesmo pesadelo, corolário de dificuldades bem reais que poderá servir de mote e motivação para a produção artística.
Cheguei muitas vezes a Paris mas cada vez que chego regresso a uma casa que ao ser também minha é de todos.

Foi no século XX que Paris verdadeiramente se afirmou como pólo centralizador de uma cultura europeia e universal. É no século XX que Paris serve de veículo de transmissão de cultura e de ideias, de arte e intelectuais.


Muitas personagens foram forçadas ao exílio, simplesmente por terem outras ideias e acabaram por descobrir em França o verdadeiro significado da palavra solidariedade.
A terra de asilo que Paris sempre representou para muitos povos permitiu a continuação da construção da sua herança cultural. Deu-lhes a possibilidade de acreditarem no valor essencial dos direitos humanos. Em Paris, capital cultural do mundo, dezenas de culturas encontram-se através do prisma da solidariedade que ali sempre foi prezada.
Cria-se assim uma literatura de exílio e constroem-se pontes entre diversas experiencias permitindo e renovando esperanças num futuro melhor.

O exílio pode ser politico, cultural ou económico. O exílio cultural existe e sempre existiu e parte por vezes de decisões individuais, de isolamento e de crescimento: intelectuais e artistas anglo-saxões que rumaram para Paris na primeira metade do século XX. O exílio politico foi mais marcante nas décadas de 60 e 70 e foi referencia para a própria luta interna dos povos pois era em Paris que se aglutinavam os intelectuais desses países: a América Latina, a Península Ibérica e a Europa de Leste são exemplos marcantes. O exílio económico teve várias vagas ao longo das décadas de 60 e 70 e voltou a assumir importância com as vagas de imigrantes do Magreb e da África francófona.
Todo este movimento de transmigração física permitiu uma transmigração cultural e o aparecimento de novas literaturas chamadas de fronteira ou de charneira. A negritude trouxe o negro para dentro do campo literário francês. A africanidade e a francofonia são hoje os únicos objectivos da nova geração de escritores em busca do reconhecimento universal. Os anglófonos e lusófonos nunca cederam à tentação de “florear” África como fizeram os intelectuais da negritude e caracterizam-se por uma constante questionamento da essência da sua origem e por uma assumpção das suas raízes numa urgência bem característica destes tipos de estudos pós-coloniais.

“A poesia da negritude era uma revolução do olhar. Essa subversão dizia respeito primeiramente aos africanos a quem séculos de escravidão e colonização ensinaram a olhar seu continente e suas culturas com os olhos de desprezo do Ocidente triunfante.
Surgida na Paris dos anos 1930 e 1940, sob a pluma do trio carismático formado pelo senegalês Senghor, o martinicano Aimé Césaire e o guianense Léon-Gontran Damas, a nova poesia negra cantava sem complexo a beleza da “mulher nua, mulher negra”, exaltava a energia e o fausto dos impérios africanos esquecidos, desalienando o olhar que o negro tinha sobre si mesmo e sobre seu passado.” 4

Paris
Perímetros, lugares e caminhos
Montmartre e Montparnasse


Paris foi uma festa, que começou bem antes dos loucos anos vinte. A festa era da burguesia, dos artistas e da vida boémia. A Belle Époque despertava sentimentos embriagantes. Picasso, Apollinaire e Braque rendiam-se ao Cubismo e Paris era expoente e modelo da modernidade.
Montmartre e os grandes boulevards eram os centros da actividade artística e intelectual.
A guerra de 14-18 interrompeu as festividades e o movimento Dada mudou-se para o Cabaret Voltaire em Zurique, na eterna neutral Suíça.

Os canhões da guerra calaram-se e a festa continuou….os anos loucos 20 tinham inicio. Ernest Hemingway descreve bem esse estádio parisiense em “ Paris é uma festa”.
“Lembro-me dessa época como de um perpétuo 14 de Julho” afirmou Maurice Sachs.
Era o Tout Paris em festa; excentricidades, divertimento e criação como novo fôlego após quatro longos anos de uma guerra sanguinária.

“(…) O movimento Dada e o Surrealismo fizeram explodir a vida literária com textos de André Gide, Philippe Soupault, Aragon (…) No Boeuf sur le toit, na rue Boissy d´Anglas, junta da Madeleine, estavam, lado a lado, Jean Cocteau, Erick Satie, Raymond Radiguet, André Breton, Max Jacob…” 7

O centro artístico nesta altura mudou-se para Montparnasse. O chic do momento era o Jockey, o Dôme e a Coupole. Principalmente estes três iniciaram uma tradição de encontros entre poetas, pintores e músicos de jazz. O mundo fluía entre o boulevard Montparnasse e o carrefour Vavin. Novamente com Picasso e agora com Vlaminck e Modigliani.


“Nesse tempo muitas pessoas frequentavam os cafés no carrefour Montparnasse-Raspail com o intuito de aí serem vistos e, em certo sentido, esses locais desempenhavam a função que hoje em dia foi entregue às comadres dos jornais que têm a seu cargo distribuir sucedâneos diários da imortalidade.” 5


“ (…) o Dingo Bar onde, em Abril de 1925, Scott Fitzgerald e Hemingway se conheceram. A rue Delambre é uma rua pequena, repleta de bares e hotéis, fica atrás do mítico Café Le Dôme “3

Stefan Zweig testemunhou esses anos de profícua produção artística e de intensa energia interior que permitiu à cidade propagar o vírus da criação artística e literária. Estas vibrações permitiram uma imensa troca de experiencias, saberes e ideias que fervilhavam pela cidade e pelos lugares.


“(…) Déjà avant 1914, ces cafés étaient fréquentés par des peintres et des revolucionaires comme Lénine, évoqués par André Warnod dans ses “ Montparnos” et si on remonte plus loin dans le temps, il faut mentionner la rue de la Gaîté, de la joie comme disaient les gens du quartier (…)”8

A criação contagiava e as ideias surgiam fulminantes. Charles-Edouard Jeanneret, Le Courboisier, imaginou uma periferia de Paris cheia de modernos arranha-céus; foi a génese da actual La Defense.

As Arts Déco instalavam-se e os anos 30 viram a continuação do turbilhão criativo e festivo. O Jazz mudava-se para Paris com a vinda de Duke Ellington e Louis Armstrong. Os realizadores René Clair e Mardel Carne iniciavam a sua carreira.

Mas o ciclo de criação e partilha seria terminado com o som das bombas e com a invasão germânica. Pétain virou as costas aos franceses e criou o fantoche de Vichy. De Gaulle foi resistente em Londres e Von Choltiz assumia o comando da cidade luz.

Durante quatro anos a vida foi feita de resistência e expedientes de sobrevivência. Os cupões e senhas de racionamento regressaram em força e as filas de espera simbolizavam a enorme paciência dos habitantes. O mercado negro florescia e os militares alemães gozavam e beneficiavam do privilégio de ocupar uma cidade como Paris, beneficiaram dos prazeres de Paris.
A revolta de Paris foi feita semanas antes da divisão Lecrec libertar oficialmente a capital. A 26 de Agosto de 1945 De Gaulle chegou ao Arco do Triunfo. Paris estava em júbilo.

Mas a recuperação de Paris e do espírito parisiense iria ainda demorar e foi só no inicio doa anos 50 que Paris recuperou a sua energia criadora.

O Paris do pós-guerra foi feito de júbilo, sofrimento e…..irreverência. A juventude e o existencialismo apossaram-se dos locais de Saint.-Germain-des-Prés: o café de Flore, les Deux-Magots, a brasserie Lipp, a Rhumerie, as caves e o famoso Tabou.

Foi como se o centro da criação e produção tivesse apanhado a rue de Rennes e saído de Montparnasse em direcção a Saint-Germain.O assalto ao bairro tinha sido consumado de uma forma pensada e consistente. O trompete de Boris Vian e o be bop do clube Rose-Rouge animavam as noites. Juliette Gréco e os frères Jacques dominavam os palcos improvisados das caves.
A imprensa via nos existencialistas uma excentricidade da Libertação. Foi criada a revista Temps modernes que juntou Sartre e Simone de Beauvoir. Em 46, Sartre faz a sua famosa conferencia na Sorbonne sobre a responsabilidade de ser escritor. O teatro do absurdo dava tímidos passos com Beckett e Ionesco.

Os existencialistas eram objecto de troça por parte da imprensa e os escândalos sucediam-se pelo facto da irreverência das suas atitudes chocar com a moral conservadora dominante na sociedade francesa da altura.

Saint-Germain-des-Prés
Um caso particular e único


O quartier Saint-Germain era o centro e placa rotativa de um conjunto de intelectuais individualistas sem individualidade, excêntricos de todos os quadrantes, snobs, resistentes do surrealismo, teóricos do nascente existencialismo, intelectuais e afins que se reuniam em cafés e bistrots fumarentos para falarem e discutirem na honesta tentativa de mudarem o mundo.

Em 1950, Boris Vian, o príncipe de Saint-Germain, produziu um texto histórico para a colecção dos Guides Verts e que se tornou um marco antropológico, topográfico, sociológico, etnográfico e económico, uma verdadeira míni enciclopédia de Saint-Germain-des-Prés do pós-guerra.
Durante este anos de ouro, Saint-Germain viu florir novas correntes de literatura, teatro, canção, cinema, artes plásticas, dança, filosofia, fotografia e música contemporânea.
Este verdadeiro turbilhão cultural foi único na história da Humanidade e ainda hoje se podem verificar os resultados e as influências dessa verdadeira revolução cultural que iria culminar no Maio 68. Um pouco como na época das luzes no século XVIII que acabou por ser a génese da Revolução de 1789.


Todos os que queriam partilhar de uma vontade e mudança e construção de um mundo novo encontravam-se lá: Sartre e Beauvoir no Flore e no Deux Magots, Man Ray e Antonin Artaut no Rhumerie, Camus e Tzara no Tabou .
Além dos famosos e das celebridades, foi toda uma juventude, estudantes europeus e americanos que vieram Saint-Germain celebrar a liberdade e sobretudo ajudar a construí-la.

“ Saint-Germain-des-Prés est une île; à cette nature insulaire, elle doit l´humidité de son climat, l´abondance de ses débits de boisson et le développement de ses rivages qui, s´ils ont parfois reçu des noms sans rapport évident avec leur configuration, permettent néanmoins aux habitués de s´y reconnaître.
Les autochtones, qui ne sont pas d´accord avec l´administration, limitent généralement son aire au contour suivant, que l´on peut circonscrire en traçant, sur un plan ordinaire de Paris, les repères ainsi définis.
1. Au nord: quais Malaquais et de Conti
2. Au sud: rues Vieux Colombier et Saint Sulpice
3. À l´est: rue des saints-pères
4. À l´ouest: rue Dauphine et de l´Ancienne Comédie.
À l´île principal, s´ajoutent des terre isolées qui profitent de l´appellation contrôlée et jouissent ( non sans raison) du privilège de l´exterritorialité: ce sont l´île Saint Yves
( point de croisement du Tropique de l´Université et du Méridien nº 49), l´île de la Rose Rouge et l´archipel des Grands Augustins.
Il est a noter que les bras de mers et canaux qui entourent ou traversent l´île ne sont pas colores en bleu sur les cartes, afin de donner le change et de ne pas troubler les chauffeurs de taxi; de la sorte, ceux-ci les franchisent sans s´en apercevoir. Il n´en reste pas moins qu´un Germanopratin ( ou habitant de Saint-Germain-des-Prés) ne peut franchir les limites de son territoire sans se munir d´un équipement spécial (cravate pour les hommes, jupe pour les femmes) et de tout son courage. D´ailleurs, sitôt traversés les bras de mer en question, le Germanopratin perd pied; ceci incite à penser que l´eau se poursuit au-delà de ses chenaux et ne revêt une apparence solide qu´afin de mieux tromper son monde. On sait que rien n´est perfide comme l´eau. Nos indigènes, pénétré de cet axiome, se gardent bien de la consommer pure.” 6


O Flore
O berço da legenda


“(…) o Café de Flore, onde travei uma fugaz conversa com Roland Barthes, que me contou que, depois de trinta anos como cliente do bar, a empregada da caixa tinha-o visto na televisão e ficou a saber que era escritor (…)” 3

É o mais antigo dos cafés de Saint-Germain. Aberto no segundo Império teve altos e baixos e entrou em declínio depois da guerra de 1914 mas sempre mantendo o estatuto de café literário e politico de esquerda.
Mas foi só a partir de 1930 que se transforma no motor do desenvolvimento cultural de Saint-Germain, um pouco à sombra dos Editores que se estabeleceram em massa na Rive Gauche e também da presença da Câmara de Deputados nas proximidades.
O núcleo de habitués incluía Robert Desnos, Antonin Artaut, Serge Regiani e Jacques Prévert entre muitos outros. Sartre e Beauvoir aí se estabeleceram em 1939 antes de se passarem para o Deux Magots.
Simonde de Beauvoir contava: sobretudo no Inverno esforço-me por chegar bem cedo para ocupar o melhor lugar bem junto do aquecimento.
Verdadeiro café refúgio, transformou-se em escola de estudo, onde se podia escrever melhor e mais tempo sem os dedos enregelarem, frisava Simone.
O escritor Boubal que em 1939 comprou o Flore contava : cerca de 1942 frequentava o café um senhor que vinha da abertura até ao meio-dia e depois do almoço até ao fecho. Vinha por vezes com uma senhora e sentavam-se em mesas separadas mas no mesmo canto. Comunicavam por bilhetes enviados pelo garçon. Só quando chamaram um dia ao telefone Mr. Sartre é que o identifiquei.
Sartre dizia que a atmosfera do Flore era como a de clube inglês e que lhe permitia produzir bastante. Não só ele mas também Jacques Prévert e Albert Camus são admitidos neste circulo restrito.
O resultado desta partilha e intercâmbio é nosso conhecido e regista-se como uma das épocas mais profícuas e importantes da produção literária e artística da Humanidade.
No Flore foram escritos L´invitée por Simone de Beauvoir, L´Être et le Néant, as peças Les Mouches e Huis-Clos por Sartre.

Os tempos também são de festa e de teatro. Picasso junta-se ao clã e Boris Vian tornava-se em bandeira estereotipada de um movimento, de uma época e de um lugar.
O sucesso das pessoas foi também o sucesso de um lugar, Saint-Germain-des-Prés, tornou-se legenda dentro da própria legenda que eram as pessoas.


Deux Magots
O Café da grande esplanada

O Deux Magots abriu em 1885 e deve o seu nome a dois chineses de porcelana herdados do antigo armazém de frivolidades que existia naquele lugar.
Situado no Boulevard Saint- Germain no carrefour com a Rue de Rennes simboliza um certo elitismo sublinhado pela clientela snob e pelos preços elevados. Talvez por isso aí fizeram sede entre outros Oscar Wilde, Jean Giradoux, Le Corbusier e Raimond Queneau, este primeiro beneficiário do prémio literário Deux Magots criado em 1933.
A sua clientela era tão distinta que não a podíamos imaginar noutro sitio que não este e sobretudo não a podíamos imaginar no Flore.




A brasserie Lipp
O Café politico por excelência

Isolado e solitário no lado oposto do boulevard de Saint-Germain, encontrava-se a famosa brasserie Lipp usada já desde os anos 20 por André Gide que “ lisait, frileusement enveloppé dans un coin”7
A brasserie deve o seu nome a um refugiado da Alsácia, M Lippmann e sempre foi o lugar de eleição dos deputados e intelectuais para as discussões politicas.
É famosa a discussão entre os partidários da Action Française e Léon Blum em 1935. Nessa noite gritou-se “à mort Léon Blum” e foi só a intervenção de Robert Desnos e do pintor Picabia que permitiu a saída de Blum ileso.6


Le Tabou
O fenómeno da cultura das caves

O sucesso e a publicidade da concentração de tantos e tão ilustres personagens originou um fenómeno perverso de exposição mediática. As pessoas procuravam Saint-Germain para ver os intelectuais famosos, os escritores da moda, enfim, todo o meio artístico pela primeira vez concentrado e exposto num só lugar. E quando o publico invadiu Saint-Germain já muitos tinham fugido e refugiado nas caves.
A festa continuava fora de horas em locais de difícil acesso como em um acto de conquista do território.
O numero de bistrots também aumentou e importa referir outros como o Bar-Vert,o Montana e o bar da Pont-Royal onde Sartre acabou por se refugiar.
E aos poucos aparecia uma outra geração que toava conta do quartier durante a noite como se de lobos se tratassem.
Juliette Gréco com os seus longos cabelos escuros, de calças e camisola negra criou uma moda. O Tabou foi então adoptado pois era o único lugar que ficava aberto até de ao alvorecer e o nome condizia com o ambiente de subcultura latente.
Foi o apogeu de Saint-Germain e o inicio do fenómeno da caves. Um outra cave, Le Lorientais, era palco para noites de renovação do jazz tipo New-Orleans sob a batuta do clarinete de Claude Lutter. Era o nascimento do be-bop.
O Tabou contrapõe e chama Boris Vian com seu trompete. Os tempos áureos tinham começado.
Entretanto o escândalo está preste a rebentar com a famosa reportagem do semanário Samedi-Soir com as fotos Juliette Gréco em calças e toda de negro e Roger Vadim sem gravata e despenteado. O titulo da reportagem era indiciador do sensacionalismo da reportagem:
“ Comment vivent les troglodytes à Saint-Germain-des-Prés”
Trogloditas era assim o ultimo avatar dos existencialistas. Era o começo de uma autentica febre jornalística mundial que demorou alguns anos a arrefecer e que transformou uma geração de intelectuais e artistas nos primeiros ícones mundiais e sobretudo em exemplos e modelos de toda uma juventude ocidental.

O Tabou é invadido por curiosos e as hostes passam para a Rue Saint-Benoit para o Club Saint-Germain onde mais uma vez Boris Vian e Juliette Gréco ( a musa dos existencialistas) faziam de mestres de cerimónias. São as famosas noites temáticas que iniciaram modas que ainda hoje se mantêm um pouco por todo o lado.
As caves proliferam então por todo Paris mas agora mais num fenómeno de moda do que de cultura popular.

Conclusão

Pretendeu este trabalho fazer uma abordagem sumária dos intercâmbios, das ligações e das partilhas que a cidade de Paris permitiu e de que forma Paris é em si mesmo condicionadora e potencializadora da produção e da criação artística.
Paris assume-se assim como verdadeira ponte entre culturas, gerações, movimentos e personalidades.
Os diálogos artístico-culturais que a cidade de Paris testemunhou foram imensos, em diversas épocas e diversos lugares particulares da cidade.
Como é evidente com este objectivo tão abrangente corremos sempre o risco de esquecer personalidades, épocas ou movimentos. O critério seguido foi pessoal e assumido em termos espácio-temporais.

O reflexo transmitido neste trabalho é pequeno perante a enormidade da tarefa e do sujeito de análise.


Referencias Bibliográficas:

1 WERBER, Bernard (2000) : “L´Encyclopédie du savoir relatif et absolu”, Paris, Albin Michel
2 PAYNE,MICHAEL (1996) : “A Dictionary of Cultural and Critical Theory”, Oxford, Blackwell Publishers
3 VILLA-MATAS, Enrique (2003) : “Paris nunca se acaba”. Lisboa .Editorial Teorema.
4 CHANDA, TIRTHANKAR s\d: entrevista em www.ambafrance.org
5 HEMINGWAY, ERNEST : « Paris é uma festa », Lisboa, Livros do Brasil
6 VIAN, BORIS ( 1974) : « Manuel de Saint-Germain-des-Prés », Paris, Pauvert
7 PAYEN APPENZELLER, PASCAL ET FRANCE (1980): ”Promenons-nous dans Paris”, Éditions Princesse, Paris
8 CARTER, ( 2007) : http://carter-carter-carter.blogspot.com/

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Candide ou la antithèse Voltairienne

« Sous la trame d´un conte traditionnel, tissu d´aventures en apparence incohérentes on aperçoit donc dans Candide l´ébauche d´un roman suivi où ces aventures contribuent à l´édification d´une personnalité. Dans une succession d´expériences absurdes (…) le jeune Westphalien s´y révèle peu à peu lui-même. Sur le plan des idées comme sur celui de la technique, le côté satirique et pamphlétaire de Candide n´est que le masque d´une recherche authentique où l´homme, liquidant illusions et chimères, parvient tant bien que mal á se réinventer.»

Jacques Van Den Heuvel

Depuis l´apparition du roman comme genre autonome, les écrivains cherchent à instruire et apprendre leurs lecteurs par le biais de leurs œuvres. Cet intérêt et cette volonté plutôt didactique s´affirme avec grande force au siècle des Lumières. À cette époque la diffusion du savoir était essentielle . La parution de L´Encyclopédie est l´exemple le plus important de ce fait. Pour bien transmettre leurs idées certains intellectuelles préfèrent utiliser des personnages et des situations fictives, voire la fiction.
Nous savons que le mouvement des Lumières vise à chercher une (la) raison pour chasser les injustices et la bêtise. Cette entreprise était d´abord bien promulguée par la publication de la production écrite des philosophes. Alors, quoi de plus assertif et adéquat pour rester fidèle a ces principes que la forme narrative ?
Voltaire va utiliser cette forme jusqu´à l´exhaustion : Candide peut être envisagé comme un cas très particulier d´un conte philosophique.
Nous verrons, dans une première partie, que Candide s´éloigne bien vite des formules du conte traditionnel et que la structure fictionnelle que Voltaire écrit a un sens très personnel.
Ensuite on verra comme la fiction en général et le roman en particulier permettent de toucher un public plus vaste en lui exposant idées et information sous une forme directe.
Dans un dernier temps, nous examinerons, dans Candide, les particularités de la philosophie des Lumières et de la Quête de l´Homme pour soi-même en se réinventant en permanence.

Candide ou la antithèse Voltairienne

Candide débute par une formule traditionnelle : «il y avait ». Candide est un conte fort amusant quoique très simple et peu varié. Aussi, on peut considérer que Candide est un vrai roman picaresque et digeste avec une folie de diligence cahotant à toute vitesse dont les passagers sont brinquebalés .
Pour bien achever cette illusion du conte traditionnel Voltaire nous donne un héros pourvu de toutes les qualités, avec un caractère fort, un sens moral et un grand courage. La fin heureuse avec toute la troupe, un trompe d´œil, un peut comme si les morts et les angoisses n´existaient jamais dans l´histoire.
Mais cette belle toile cache des renversements qui ne sont qu´une parodie inondé des interventions indirectes comme des flèches ironiques et qui mettent encore là- dessus une apparente innocence. Voltaire fait une reproduction fidèle des procédés romanesques : le héros est moqué, reçoit la fessée, on lui verse des immondices ; les personnages sont abîmés par la vie et le récit achève a parcourir tout le monde et, il existe, en effet, une présence d´un monde réel mêlée à la fantaisie.
Les expressions de Candide « Ce qu´ils vivent…….ce qui leur arriva… » sont des formules empruntées aux récits romanesques. Et on en rit, ce qui prouve toutes les caractéristiques picaresques romancières.
Le schéma narratif du conte se retrouve toujours pour aller de la simple soumission de Candide à son affirmation réelle. Le grotesque, l´ invraisemblance et le rôle miraculeux du hasard, font un enchaînement rigolard de causes et des effets. Plus, Voltaire s´efforce à prouver la cohérence des événements plus on se rend compte de l´absence d´un lien logique entre eux.
Les voyages sont plutôt des leçons qui conduisent à l´universalité du message : le personnages se transportent entre continents, entre religions et catégories sociales. Elles font découvrir de nouveaux horizons et ouvrent de nouvelles perspectives.
Aussi l´imitation systématique d´un procédé de double utilisation de traits est bien caractéristique du procès romanesque.
Le sens vient de l´apparente absence de sens : un sens littéraire avec une dimension mythique pendant que Candide parcourt le monde et que peu à peu il devient l´image du destin de l´Humanité.
La parenthèse de l´Eldorado au milieu du texte, résonne comme l´instant où l´optimisme de Candide sera presque en repos. Cet espace est utopique mais chez lui, surtout après l´Eldorado l´optimisme est mort. Voltaire nous instruit en rappelant qu´un tel monde n´existe et n´existera jamais et que le bonheur est toujours le fruit du travail et non du rêve.
Un petit mot sur la relation parfois ambiguë entre l´œuvre de Voltaire et sa vie. Le chemin et les mésaventures de Candide flottent au saveur des épisodes de sa vie ; cette dimension autobiographique est bien présente chez les récits de Voltaire.
La symbolique présente dans Candide est très facile : les noms des personnages annoncent leur caractère ( ex : Pangloss > tout dans les mots, Candide > apprenti philosophe auquel le lecteur est convié à s´ identifier). Le discours, la discussion et les idées tiennent plus de place que l´action . Les systèmes philosophiques sont mêmes incarnés par des personnages.
( Pangloss pour l´optimisme et Martin pour le pessimisme ). Voltaire fait entendre sa voix e ses idées à travers des personnages simples et très proches du peuple, auxquels chacun peut facilement s´identifier.
La fiction en général et le roman en particulier permettent, tout d´abord, vulgariser une doctrine, une philosophie ou bien une idée pour entraîner l´adhésion d´un grand nombre de personnes. Susciter le plaisir ou bien dépayser le lecteur était une façon de bien transmettre les idées de l´écrivain.
Premièrement, le lecteur est bien placé dans l´intrigue et désire connaître le dénouement en allant jusqu´au bout pour savoir : le héros va-t-il parvenir à retrouver Cunégonde et à l´épouser ? Cette mise en scène finale est une assurance pour l´auteur que son message sera totalement transmis tout opposé aux autres formes d´expressions qui découragent les lecteurs.
De même, la structure des récits est simple permettant retenir l´attention et captiver le lecteur.
L´écrivain provoque l´amusement du lecteur par le recours à l´humour et à l´ironie, voire la parodie. Le lecteur rit et en riant le message et la critique achèvent son but. La complicité entre l´écrivain et le lecteur est aussi obtenue.
L´ explication d´ arguments abstraits par des exemples concrets confère une valeur de preuve vis-à-vis du lecteur. Ainsi l´épisode du nègre mutilé de Surinam est la description de la réalité brutale de l´esclavage.
Le regard naïf et étonné de Candide suscite la compassion et l´émotion du lecteur et comme tel la réalité de l´esclavage est dénoncé.
L´utilisation de la fiction et de le roman est donc une stratégie bien efficace pour transmettre leçons et idées, car elles perment aux lecteurs le divertissement et au même temps la compréhension des idées de l´auteur.
Candide nous présente une vision très sombre du monde et à la fois nous pousse vers un examen pour en déterminer une solution : toutes les grandes misères de l´homme sont passés en revue ; tous les pays de la terre, l´Ancien et le Nouveau Mondes sont visités par l´héros mais nulle part l´homme est heureux. Exception faite pour l´Eldorado mais aussi ici tout le monde se plaint……et voilà l´optimisme ruiné et toutes les misères humaines nous passent sous les yeux. Mais cependant le pessimiste ne gagne pas terrain et une conclusion modéré est en train d´être bâtie. Des indices de bonté et bonheur écartent la mort et préparent la conclusion : il faut que les hommes s´entendent pour bien travailler en commun dans la société et ainsi s´améliorent peu à peu. Or comme dit Candide il faut cultiver notre jardin !
Candide démolit la construction leibnizienne par l´obsession d´un style. Optimisme et pessimisme sont éprouvés non comme idées mais comme modes contrastés d´existence.
Voltaire renverse le monde défendue par Leibniz et tous les dogmatismes providentiels : Candide est la antithèse Voltairienne.
Voltaire raisonne en contant. Il aime ridiculiser les hommes et les idées qui sont à l´origine de la souffrance. Par le biais du ridicule il dénonce la cause de la souffrance et de l´abus. Il démontre par l´absurde et par la tolérance de l´Humanité en faisant rire de l´ inhumanité et de l´intolérance.
Le monde de Candide est un monde où l´ont vit. Au plus fort des désastres l´univers fournit à Candide une solution pour éviter la mort.
Ainsi et comme conclusion, on peut affirmer qu´il est très difficile d´ envisager Candide comme un conte. L´importance de la parole et la dissertation masquée nous emporte vers l´adjectif « philosophique ». Voltaire prend soin d´écrire un texte trépidant et drôle où l´excès défend le refus des idées innées et les avantages de la méthode expérimentale.
Ainsi à travers ses Contes Philosophiques, Voltaire raille les aventures romanesques qui entraînent ses héros dans des voyages, hasards et sentiments conventionnels. L´inconsistance psychologique des personnages, la narration entrecoupée font de Candide la dérision du roman romanesque.Ce type de récit remplit à la perfection le rôle de la littérature : instruire et apprendre au même temps du vrai plaisir de la lecture.
Voltaire doit à Candide part de sa notoriété posthume. Avec Candide un autre homme se dresse et se transforme dans l´antithèse de Voltaire. Ce livre est devenu un classique ayant supplanté tout le reste de son œuvre.
Voltaire revient à son idéal par le biais de la poésie : « Je ne puis souffrir cette rage de tout détruire sans rien édifier ».

Bibliographie:

LEVRAULT, LÉON (1934) : “Le Roman, des origines à nos jours”. Paris .Mellottée
Éditeur.

DIDIER,BÉATRICE (2003) : “Histoire de la littérature française du XVIII siècle”. Rennes. Presses Universitaires de Rennes

BARGUILLET,FRANÇOISE;(1981):”Le roman au XVIII siècle”, Paris, Presses Universitaires de France

POMEAU, RENÉ (1995) : “ La religion de Voltaire » . Paris. Librairie A.G. Nizet

POMEAU, RENÉ (1991) : « L`Europe des Lumières» . Paris. Pluriel

S/A (1954): « Les philosophes du XVIII siècle», Paris, Librairie Aristide Quillet

DANTZIG, CHARLES (2005): ”Dictionnaire égoïste de la littérature”, Paris, Bernard Grasset

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Dieu est Lumière


“En 1130, la plus royale des églises n´était pas une cathédrale mais un monastère: Saint- Denis- en- France.
Depuis Dagobert, les successeurs de Clovis avaient choisi ce sanctuaire pour necrópole (...) annexée par la puissance capétienne, la tradition carolingienne retournait ici à ses origines: la plaine de France, et non plus la Franconie. L´art nouveau qui naît á Saint- Denis manifeste avant tout ce reflux. Il est né de la volonté d´un homme, Suger” 1

Abordagem à Arquitectura Gótica após uma visita à
Abadia de Saint- Denis


Quando Suger foi eleito abade de Saint- Denis em 1122, já ninguém se lembrava dos últimos trabalhos de remodelação da abadia datados da época Carolíngia. Nesse tempo a Igreja tinha um aspecto vetusto e não era mais do que a igreja do seu fundador e construtor, Dagoberto.
Toda a sua politica teve como objectivo fazer de Saint- Denis não só a mais antiga mas a primeira das Igrejas de França.
No sec. IX, Luis, o Pio ofereceu ao mosteiro um manuscrito em grego redigido no sec.VI por um certo Denis, confundido com Denis, o Areopagita, convertido por S.Paulo no sec.I. Logo S. Denis, bispo de Paris no sec.III foi associado ao Pseudo-Denis, o Areopagita discípulo directo e único convertido pelo Apóstolo S. Paulo. O prestigio e fama que conseguiu foram extraordinários e tornou-se num dos santos mais venerados e idolatrados em França.
Estes textos ( Corpus Aeropagiticum) tiveram uma valor quase apostólico durante toda a Idade Média e foram muito admirados pelo Abade Suger

“Il ne fait pas de doute que Suger était un croyant aussi sincère que le plus sincère des hommes d´Église de son époque et qu´il manifestait les émotions appropriées dans les circonstances appropriées « arrosant le pavement de ses larmes » devant les Saints Martyrs et se montrant « dévotement joyeux, joyeusement dévot » lors des fêtes joyeuses de Noël et Pâques.” 2

S.Denis era também o protector da Dinastia Capetiana e como tal a abadia de S. Denis tornou-se a necrópole real.
Com Suger a ligação ao Rei e à monarquia foi reforçada e estrategicamente planeada. Suger estudou com o filho do Rei e futuro Luis VII.
Há quem o coloque como verdadeiro pai e fundador da monarquia francesa já que estrategicamente colocou o reforço da monarquia e do poder real no topo da sua ambição pessoal, ao mesmo nível da sua outra grande ambição e objectivo pessoal: reedificar e engrandecer a Abadia de S. Denis.

A Igreja do Abade Suger: a primeira criação da Arquitectura Gótica

Era então necessária uma Abadia à altura das ambições de S. Denis. Vontade, querer e dedicação não faltaram, assim como os meios financeiros necessários para tal empreendimento.
Orgulhoso e entusiasta da sua própria obra, Suger descreve minuciosamente todos os trabalhos de renovação da Abadia em dois documentos únicos De son administration e De la consécration. Estes testemunhos excepcionais foram e são preciosos para os historiadores e serviram para se ter uma noção exacta da construção da primeira grande obra da Arquitectura Gótica. Aliás, podemos dizer que foi também devido à existência destes documentos escritos que S. Denis se transformou em ícone e monumento chave da História da Arte e da Arquitectura. O papel do Abade Suger é assim de extrema importância na História da Arte e na História da França.

“Saint Denis n´est pas seulement un chef-d´oeuvre.C´est un fait, considérable dans l´histoire de la civilisation médiévale, et c´est un homme Nous ne connaissons pas le grand artiste qui l´a élevé, mais celui qui l´a conçu, anime de son souffle et de la poésie de sa vie, nous l´avons tout entier. Suger, abbé de Saint- Denis, ministre de Louis VII (…) Ce seigneur dans son église est un bûcheron dans son forêt, ami des beaux arbres, qu´il va choisir, et des belles colonnes, qu´il fait venir de très loin. Il y a quelque chose de rustique dans la vigueur de ses entreprises, mais son ardent enthousiasme pour son oeuvre crée autour d´elle la ferveur, les concours, le rayonnement qui lui sont nécessaires.Suger est le chef des architectes, des imagiers, des orfèvres et des peintres. Sa pensée aspire perpétuellement à la puissance et à la nouveauté de la forme.” 3

Inicialmente Suger acrescentou um maciço ocidental e uma nova fachada na parte Oeste. O maciço ocidental foi terminado em 9 de Junho de 1140. Os níveis superiores das torres foram deixados em espera enquanto Suger refazia toda a estrutura carolíngia construindo um todo novo santuário. Mais comprido e com um novíssima cabeceira a abadia estava pronta para a consagração em 11 de Junho de 1144.
Todas as intervenções posteriores do século XII, XIV e XIX não fizeram mais do que sobrevalorizar a obra prima de Suger que morreu em 1231.
Foi mantida a fachada, o maciço ocidental, a cripta, o deambulatório e as capelas radiantes.
Hoje a obra de Suger suscita uma admiração unânime e constitui a primeira grande criação da Arquitectura Gótica.
Suger inovou e personalizou ele próprio uma obra prima e um começo de um estilo e de uma nova época, num caso único da História da Arte.

Uma nova arte e a quimera da luz

As obras começaram pelo maciço ocidental em data não registada mas terminaram em 1140 naquele que foi o primeiro degrau no caminho de “procura da luz”. Este maciço constitui uma espécie de ante nave bem na tradição das abadias beneditinas. Duas torres elevam-se por cima das capelas laterais (a igreja perdeu a sua torre norte em 1846). Na fachada, três portas dão acesso ao interior da abadia. A luz penetra pelas arcaduras das torres e através de uma rosácea central em cima da porta central, a primeira a ser colocada numa fachada aberta a Ocidente e que serve para clarear as capelas superiores dedicadas à Virgem, S. Miguel e aos Anjos. Esta base teológica criará o estilo e a marca de todas as catedrais futuras abrindo um novo ciclo, um novo estilo.
Mas mais do isso algo também estava a mudar nas construções: começava-se a ver claro nas casas, de inverno e de verão, sem temer o frio e as tempestades. A industria do vidro desenvolveu-se e as janelas deixaram de ser pequenas. Este é um dos traços característicos da evolução da Arquitectura Gótica 4
Mas foi no coração da igreja que a mutação estética teve lugar. Suger aponta a direcção dos seus esforços para o sol nascente, o local mais irradiante de luz e mais próximo de Deus. Suprime muros e muralhas, desenvolve e cria ogivas cruzadas explorando ao máximo todos os desenvolvimentos técnicos da altura.
Foi assim que entre 1140 e 1144 se construíram capelas na cabeceira em semi circulo e onde largas janelas fazem entrar uma luz magnifica e ininterrupta. Uma nova estética tinha nascido.

“Suger eut la bonne fortune de découvrir dans les paroles mêmes du “trois fois béni Saint Denis” une philosophie chrétienne qui l´autorisait à reconnaître dans la beauté matérielle un véhicule de la béatitude spirituelle, au lieu de le forcer à fuir comme une tentation, et à concevoir l´univers tant moral que physique non comme un monochrome en noir et blanc mais comme une harmonie de couleurs.” 2

Denis é antes de mais a unidade do Universo e a Luz. A Igreja que o representava irradiava luz da cabeceira à porta, sem obstáculo e numa atitude simbólica e mística que a todos surpreendeu. Era a irradiação divina. A lux nova.
Os pensadores e teóricos sacros atribuíram a esta igreja e a este estilo novo um valor singular e moral . “ Tes murs sont des pierres précieuses” 1
Suger fez entrar luz e cor na sua igreja através do vidro colorido, através dos vitrais. Num desses vitrais Suger fez-se representar para a posterioridade.
A iconografia de S. Denis é bem o protótipo da Arte Gótica nascente. As representações na fachada por cima dos portões de entrada são bem exemplificativas de uma nova maneira de pensar, de ver o mundo e do papel da Igreja.
A Abadia de S. Denis exprime um cristianismo que não é apenas musica e liturgia mas que se transforma em teologia pura.
O Cristo de S. Denis é o Cristo dos evangelhos sinópticos: assume face de homem. A Abadia de S. Denis foi construída sob a exaltação da reconquista da Terra Santa por isso Carlos Magno é representado na sua cruzada a caminho de Jerusalém.
Vivia-se um tempo em que a peregrinação à Terra Santa e a miragem de um Oriente redentor dominava o imaginário Cristão.
Esta confrontação com o local de vida e sofrimento de Cristo não foi mais do que a assumpção da humanidade de Deus.
Esta nova teologia foi bem desenvolvida e aproveitada por Suger nos seus dois grandes objectivos de vida referidos anteriormente: reforço e expansão do poder real em França e engrandecimento da Abadia de S. Denis.

O novo Santuário

“La cathédral gothique est la représentation la plus forte et la plus vaste du sentiment médiéval. Le mysticisme et la scolastique, ces deux grandes forces vitales du Moyen age, qui apparaissent généralement comme irréconciliables, sont ainsi intimement unies. L´intérieur est tout mysticisme et l´extérieur tout scolastique. C´est le même transcendantalisme du mouvement qui les unit, mais il se sert des moyens d´expression différents: dans un cas ils sont organiques et sensuels, dans l´autre abstrait et mécaniques. Le mysticisme de intérieur n´est qu´une scolastique recueillie passée dans le domaine organique sensuel”5

O Santuário concebido por Suger é iluminado por janelas enormes decoradas por vitrais coloridos. É ligeiramente sobreelevado em relação ao transepto e à nave, tendo-se acesso através de escadas.
A grande inovação na obra de Suger está nas novas funções litúrgicas do coro que passou para próximo do altar deixando a nave principal.
O deambulatório e as capelas radiantes foram mais uma consequência das necessidades especificas de S. Denis mas que ajudaram a potencializar o resultado final. Uma estrutura ligeira e muito aberta transforma a Abadia numa obra prodigiosa de engenho e arte.
A cabeceira é contornada por filas de colunas maciças e emparelhadas que cercam o deambulatório e as 7 capelas radiantes, cada uma iluminada por duas janelas.
As abóbadas de arestas foram uma escolha deliberada e uma solução extremamente feliz e bem conseguida. Esta estética da cabeceira e do altar foi largamente disseminado em todo este Gótico Inicial e que durante muito tempo era referido como Escola de S.Denis.
As abóbadas de ogivas de perfil fino são testemunho da técnica dos mestres que construíram a abadia e da genialidade de quem a concebeu.
A audácia destas ideias e do prodígio técnico para as construir são ainda hoje um marco de referencia na História da Arquitectura.

Referencias Bibliográficas:

1 DUBY, GEORGE (2002) : L´Art et Société au Moyen Âge. Paris. Gallimard.

2 PANOFSKY, ERWIN (1975) : “Architecture Gothique et Pensée Scolastique”. Paris. Les Éditions de Minuit

3 FOCILLON, HENRY (1938) : Art d´Occident. Paris. Librairie Armand Colin

4 BECHMANN,ROLAND (1981): Les Racines des Cathédrales. Paris. Payot

5 WORRINGER,WILHELM (1967): L´Art Gothique. Paris. Gallimard

sábado, 5 de abril de 2008

Os Primitivos Flamengos do Museu de Évora


Pertencente à colecção do Museu de Évora, o retábulo flamengo da Sé de Évora foi objecto de estudo material, historiográfico e de intervenção de conservação que, executado entre 2003 e 2008, resultou do protocolo assinado entre o director do Instituto Português de Museus, Manuel Bairrão Oleiro, e a directora do Instituto Português de Conservação e Restauro, Ana Isabel Seruya.1

Relatório de visita à exposição “ Olhar de Perto: os primitivos flamengos do museu de Évora
Museu nacional de Arte Antiga, Lisboa


A minha visita à exposição decorreu no dia 1 de Abril de 2008. Em plena pausa de almoço a visita ao Museu de Arte Antiga foi como entrar num refúgio hermético em que o balbucio da cidade fica no exterior e em que uma paz e silêncio nos absorvem.
Esta mostra é temporária e está patente até ao próximo dia 20 de Abril.
O primeiro impacto é de uma excelente apresentação da exposição com um layout moderno, claro e agradável, dentro dos standards internacionais, em que as pinturas estão em lugar de destaque e em que todo o historial do retábulo e do seu processo de restauro estão muito bem expostos. Apenas uma nota negativa para a falta de tradução dos interessantes textos de explicação o que torna a exposição limitada para os visitantes estrangeiros que, durante a minha visita eram a maioria. Definitivamente este é um facto que deve ser tido em conta não só pela projecção internacional que estes eventos poderão ter mas também para uma maior integração de políticas culturais com projectos de turismo cultural que na actualidade têm uma importância significativa.
Esta é a primeira apresentação pública das pinturas do antigo retábulo da capela-mor da Sé de Évora após a intervenção geral de conservação e restauro com que foram beneficiados.
Paralelamente e ainda dentro da exposição, é feito um balanço critico de todo este projecto global e da investigação em curso sobre este monumental políptico flamengo que hoje pertence ao espólio do Museu de Évora e que é património nacional.
O retábulo é constituído por treze extraordinários painéis dedicados à Vida e Glorificação da Virgem e por seis outros com os detalhes da Paixão de Cristo.
Para mim o painel central “ A Virgem em Glória” possui uma beleza e força que me impressionaram fortemente. Talvez por não esperar esta imponência a recepção pessoal desta obra de arte foi para mim também surpresa.
A povoação do espaço pictórico através de formas humanas coroadas com uma cor muito característica da escola flamenga, faz deste políptico peça fundamental no estudo da Arte Europeia.
Uma nota estética também à extrema qualidade artística de todo o retábulo, fruto de uma encomenda à oficina flamenga de Bruges no final do século XV.
Esta verdadeira exportação artística para o Sul da Europa que deverá ter tido bastante influência na posterior produção pictórica portuguesa, nomeadamente no início de Quinhentos e nas encomendas posteriores no reinado de D.Manuel para diversos retábulos ao longo do país.
Pessoalmente também me impressionou a dimensão do retábulo que ultrapassa tudo o que até hoje tinha visto, dando uma noção de grandeza e alteridade não habituais neste tipo de retábulos.
Em relação ao projecto de recuperação e restauro ele foi estruturado segundo bases científicas muito sólidas. Esta afirmação é perfeitamente fundamentada no estudo dos painéis explicativos de todas as fases do projecto. Toda esta explicação é detalhada e secundada por dados concretos.
Um nota final para o detalhe do percurso histórico das pinturas, exposto numa única sala e onde podemos seguir a informação desde as primeiras noticias sobre o retábulo até hoje e a esta mostra verdadeiramente extraordinária.


1 Folheto explicativo da Exposição.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A Modernidade de Baudelaire


« C´est ici une belle occasion, en vérité, pour établir une théorie rationnelle et historique du beau, en opposition avec la théorie du beau unique et absolu; pour montrer que le beau est toujours, inévitablement, d´une composition double, bien que l´impression qu´il produit soit une ; car la difficulté de discerner les éléments variables du beau dans l´unité de l´impression n´infirme en rien la nécessité de la variété dans sa composition. Le beau est fait d´un élément éternel, invariable, dont la quantité est excessivement difficile à déterminer, et d´un élément relatif, circonstanciel, qui sera, si l´ont veut, tour á tour ou tout ensemble, l´époque, la mode, la morale, la passion. Sans ce second élément, qui est comme l´enveloppe amusante, titillante, apéritive, du divin gâteau, le premier élément serai indigestible, inappréciable, non adapté et non approprié à la nature humaine. Je défie qu´on découvre un échantillon quelconque de beauté qui ne contienne pas ces deux éléments. » 1


Recensão crítica do texto de Charles Baudelaire, “ O Pintor da vida moderna” 1

A publicação deste texto extraordinário e referencial para a História da Arte, teve algumas peripécias. Escrito em 1859, Baudelaire só conseguiria publicá-lo em 1863, em três fascículos no jornal “ Le Fígaro”. Esta dificuldade de publicação, apesar do prestígio de Baudelaire, ter-se-á devido ao facto de este poderosíssimo texto ser uma elegia a um pintor desconhecido e sem interesse mediático (ontem como hoje): Constantin Guys.
Este texto faz parte de um conjunto de textos ligados à arte que Baudelaire produziu, desde pequenas críticas a textos mais conceptuais como este.
Baudelaire assume com audácia o confronto com o “poder académico”, que espartilhava os novos caminhos da arte .
Podemos sem duvida afirmar que em termos teóricos, a modernidade foi introduzida através deste texto.
Toda a critica baudelairiana é uma produção de conceitos de uma forma lírica e ao mesmo tempo realista.
Charles Baudelaire defende os pintores da sua época, os modernos que ultrapassam o motivo com a paixão.
A nova concepção do belo, de certa forma dual, é a principal característica da modernidade : “ La modernité, c´est le transitoire, le fugitif, le contigent, la moitié de l´art, dont l´autre moitié est éternel et immuable.”
Para Baudelaire a arte era algo de universal e que, para ser atraente, deveria ser incorporada de laivos de actualidade.
Em termos puramente teóricos poderíamos chegar a um paradoxo e verificar que desde sempre a modernidade estaria presente na arte, o que nos colocava perante um dilema conceptual. Para nos esclarecer teremos de nos reportar a toda a obra de Baudelaire e verificarmos de como ele, desde sempre, abordou estes novos tempos e conceitos: ser moderno é incorporar a artificialidade das grandes metrópoles: a reinvenção de uma nova natureza, a natureza artificial, urbana e simultânea à assunção de um novo sentimento, semi melancólico, semi existencial, o Spleen.
A modernidade seria assim, segundo Baudelaire, o transitório, o efémero, o contigente, a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.Charles Baudelaire afirma neste texto que a modernidade teria de extrair a beleza misteriosa da vida e do presente para que possa ser digna de se tornar antiguidade. Resume também, através de uma extraordinária lucidez, todo o pensamento que perdura até aos nossos dias ( o pensamento moderno).
Este texto “ O Pintor da vida moderna” é plenamente conseguido, pois resume de uma maneira muito intensa todo o pensamento e filosofia artística do autor de “ Les Fleurs du Mal”. A posterioridade estava conseguida mas Baudelaire tinha consciência que os seus leitores e os verdadeiros entendedores da sua obra ainda poderiam não ter nascido.
Afirmava também que toda a beleza seria originária no progresso da razão e não da natureza, em oposição aos conceitos do sec. XVIII : « Passez en revue, analysez tout ce qui est naturel, toutes les actions et les désirs du pur homme naturel, vous ne trouverez rien que d´affreux. Tout ce qui est beau et noble est le résultat de la raison et du calcul. »1
Ao artista, ele opõe o homem do mundo, inteiro e curioso. Este artista, este « pintor da vida moderna » vagueia entre o “ flâneur” e o génio.
Com este texto, Baudelaire passa à teoria, num método único de estruturação da lógica do raciocínio: estabelece uma relação única entre percepção, lembrança e experiencia estética. Foi Walter Benjamim que primeiro estabeleceu uma afinidade estética e conceptual entre Proust e Baudelaire. Jacques Derrida referencia também esta ligação teórica reafirmando a opinião de Baudelaire que associa a origem do desenho à memória, muito mais do que à percepção.2 E sendo assim, Baudelaire reafirma que os bons e maus desenhadores desenham com base na imagem escrita / inscrita no seu cérebro e não na imagem da natureza. Assim, e por consequência de razão, o verdadeiro crítico não seria aquele que no fulgor da exposição tira notas avidamente mas aquele que, na calma do seu retiro, redige de memória: o crítico criativo.1
O belo para Baudelaire é sempre bizarro e conduz a uma definição de arte como uma “ mnémotechnie du beau” uma certa oposição filosófica entre o visível e o dizível, entre o que se mostra e o que se diz. Ele assumia as dificuldades naturais em dizer e escrever a lembrança e a memória na confrontação das potencialidades expressivas da língua e dos afectos visuais produzidos pelo quadro.
Em resumo, o texto “ O Pintor da vida moderna” é também um ensaio sobre um pintor, Constantin Guys, onde Baudelaire analisa a sua obra e a sua vida. Em certa medida Guys reflectia a imagem baudelairiana de um dandismo ecléctico e espiritual. Um dandy urbano em que a metrópole e as suas novas valências ( o boulevard, o cabaret, o teatro, o Bois ) assumem o papel de uma natureza artificial.
Neste texto, Baudelaire reafirma o que deve ser uma verdadeira obra de arte enquadrada na teoria poética moderna.
Com Baudelaire e com este ensaio, é todo um espírito e um estilo que nascem, é toda uma consciência de si mesmo, do ser urbano que se estabelece em rede e em relação com a cidade.
Apesar de dizer respeito à pintura, este ensaio é mais uma significação simbólica de uma modificação e alteração profunda que é modernidade.
Em suma, este ensaio de Baudelaire é o acto da aparição da modernidade. Quer seja pelo espírito e pela inteligência incomparáveis dos seus escritos, quer pelo seu extremo bom gosto ou pela amplitude magnífica das suas ideias, Baudelaire ( crítico de arte ou poeta) é o primeiro grande esteta dos tempos modernos.

Referências Bibliográficas :



1 BAUDELAIRE, CHARLES (1868) : “ Le Peintre de la vie moderne » dans Baudelaire- Critique d´art ( 1992) . Paris. Gallimard
2 DERRIDA, JACQUES (1990) :Mémoires d´aveugle, Catalogue du Louvre Paris.RMN

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

A paixão pelo Real : o Realismo e a Realidade


“….a dialéctica da aparência e do Real não pode ser reduzida ao mecanismo bastante elementar pelo qual o carácter cada vez mais virtual do nosso quotidiano ( essa vida sentida como que desenrolando-se cada vez mais no quadro de um universo artificialmente construído) implicaria a necessidade irresistível de uma “ ressurgência do Real”, de uma ancoragem firme numa qualquer “realidade real”.O Real que regressa tem o estatuto de uma (outra) aparência: é precisamente por ele ser real, é precisamente devido ao seu carácter traumático e excessivo, que somos incapazes de integrá-lo naquilo que apreendemos como sendo a nossa realidade, sendo portanto forçados a experimentá-lo como uma aparição de pesadelo.” 1


Abordagem sintética da obra de Gustave Courbet (1819-1877) à luz de uma historicidade artística e perante as novas questões da contemporaneidade.


Quando inaugurou em 1855 a sua exposição num barracão simples em Paris, Gustave Courbet não teve consciência que estava a ser actor da História da Arte. Intitulou-a “Le Réalisme, G. Courbet” ; o próprio facto desta exposição decorrer em paralelo à grande Exposição Universal de 55 onde estavam expostos todos os pintores consagrados do seu tempo, foi à partida um acto provocatório. A Revolução na Arte tinha-se iniciado.
Courbet assumiu-se como homem e artista do seu tempo , como activista político, com a capacidade e o poder individual de pintar qualquer tema .Buscava a verdade, a realidade tal qual ela se lhe aparecia. A realidade simples e pueril, sem artifícios e rotineira, sofredora e real. Uma realidade sem formosura, sem poses graciosas e linhas fluentes; uma realidade de cor, uma realidade por vezes também sem cor.
O choque foi total e a afronta imensa. Os artistas do sistema e da norma académica sentiram-se ultrajados.
Courbet tinha conseguido: o protesto estava feito, o golpe ao sistema e às convenções artísticas estava desferido. O verdadeiro artista fiel aos seus princípios morais e artísticos tinha então nascido. Transformou-se numa das personalidades mais poderosas do sec. XIX.

“Espero sempre ganhar a vida com a minha arte, sem me desviar um milímetro dos meus princípios, sem nunca ter mentido à minha consciência, sem pintar sequer algo que caiba na palma da mão apenas para agradar a alguém ou para vender mais facilmente”

O Realismo tinha nascido, provocatório e político. A representação mimética da Natureza transformava o artista em seu discípulo. A representação clássica e académica tinha ficado nos antípodas. A Academia sentia-se chocada pela banalidade chocante dos quadros de Courbet; mas não será a realidade, ela sim banal e por isso chocante? Não será a realidade de uma banalidade chocante?

Courbet trouxe para o espaço pictórico uma dimensão da vida que nunca nele estivera representado. Entrava-se assim noutra dimensão da arte, numa dimensão real, numa realidade real agora transposta para o universo da representação pictórica.

Um verdadeiro pintor do seu tempo

A realidade romântica desvanecia-se, e o realismo, assim como o pensou Courbet, assumia-se como novo conceito e movimento.
A adesão dos artistas a uma realidade que se quer sempre objectiva, vem de longe. Desde Altamira e Lascaux que a representação da Natureza é tentada tão fielmente quanto possível numa atitude mimética que por vezes transcende o ser humano. O mesmo aconteceu nas expressões realistas das esculturas egípcias da primeira dinastia. Na Flandres renascentista o realismo deu mais uns passos com Van Eyck. 2
O realismo francês, o de Courbet, foi realmente inovador por se assumir como pintura social, como pintura de intervenção em defesa das classes mais desfavorecidas contra uma burguesia que tinha assumido o poder após a Revolução de 1789.
Courbet assumia-se como interventor social, como socialista e a sua obra reflecte o amplo enquadramento social que a sua vida sempre teve: anticlerical, antiacadémico e antiburguês. Na tradição bem francesa do artista e intelectual engagé, Courbet assumiu esse estatuto na plenitude.
A nova dimensão de Courbet é reflexo de uma época de procura, onde as grandes questões que iriam marcar a modernidade e contemporaneidade até aos nossos dias foram pela primeira vez despoletadas.
Cada pintor assumia-se na tentativa de procurar estilos próprios e novos caminhos.
Courbet era um defensor da realidade objectiva, sem se aperceber que o seu compromisso politico pessoal o afastava de uma linearidade objectiva e sintética.
Além disso Courbet não se conseguiu abstrair de uma poesia latente que transmitiu nas suas telas imensas. O seu sentimento poético retirava realidade ao seu realismo, transformando-o sempre na sua visão, sempre contaminada pelo “sistema de crenças” ( no seu caso fortíssimo).
E Courbet assumiu-se como pintor de uma realidade que o circundava; assumiu-se com o poder de tudo pintar. E quase tudo pintou: paisagens, caça, natureza morta, motivos sociais, nus e pintou-se a ele próprio numa produção imensa que fizeram dos seus auto-retratos verdadeiros testemunhos da sua vida.
Também aqui a provocação era o mote na sua abordagem artística .

A invenção de Courbet
Os auto-retratos multifacetados

Os auto-retratos de Gustave Courbet sempre foram considerados com muita prudência e parcimónia pelos críticos e historiadores de arte.
Entre 1842 e 1855 Coubet representou-se em mais de uma vintena de auto retratos.
Analisados inicialmente como fruto de uma instabilidade estética e psicológica e de um grande narcisismo, hoje esses auto-retratos, e toda a obra de Courbet, começam a ser reanalisados à luz de grandes questões da nossa contemporaneidade.
Será que podemos dizer que Courbet tinha uma paixão pelo Real ou pela aparência? Somos forçados a regressar àquela ideia de Lacan segundo a qual, se os animais podem iludir apresentando o que é falso como verdadeiro, só os homens ( entidades habitando o espaço simbólico) podem iludir apresentando como falso o que é verdadeiro. 3
Gustave Courbet sempre foi um consumidor de imagens: visitava todas as exposições, todos os museus, viajava, era ávido de conhecimento pictórico. A sua formação artística, apesar de não académica, era muito completa, demonstrando um conhecimento do passado artístico e da herança pictórica que lhe deram uma confiança e segurança imensas. A sua principal influência foram os naturalistas do sec. XVII como Caravaggio e Velásquez .
Podemos dizer que Courbet foi o primeiro a pensar a imagem como reflexo de si, como espelho de pensamento e raciocínio.
Sabemos hoje, mais do que nunca, que a nossa estrutura de pensamento é realizada recorrendo a imagens perceptivas, uma vez que o pensamento é algo iminentemente visual. 4 Courbet talvez tenha sido dos primeiros a sentir e transmitir isso.
Nos seus auto-retratos Courbet mascarava-se e assumia personagens que encarnavam a sua personalidade instável associada a imagens referenciais de um passado romântico recente.
Sao exemplos disso “Auto portrait au chien noir” e o “Portrait de l´artiste dit l´homme blessé ». Aqui Courbet assume um diálogo extraordinário com toda uma tradição pictórica numa ebulição estética que lhe garantiu uma coerência refundada no exemplo.
Se bem que a maioria dos auto-retratos foram realizados na primeira fase da sua carreira, Courbet nunca a ele renunciou, fazendo-se representar em inúmeras telas de maneira indirecta ou secundária; ele estava presente nas paisagens magníficas que nos ofereceu e nos nus provocatórios que ainda hoje podem chocar.
As várias máscaras de Courbet não poderão ser o testemunho de várias personalidades a tentarem sobressair, a tentarem-se evidenciar, numa atitude quase esquizofrénica? Realidade? Realismo? Aparência?

Não será a realidade a melhor aparência de si mesma?

Podemos então, considerar também a interpretação dos auto-retratos de Courbert como uma espécie de rito iniciático à semelhança do que outros pintores fizeram; uma única razão para tentar explicar a quantidade e razão de tantos auto-retratos será desproporcionada e um conjunto de muitas, talvez seja a aproximação mais justa esta questão.
A associação das atitudes e máscaras que Courbet assumiu nos seus auto-retratos ajudaram-no a criar uma imagem metamórfica junto da opinião pública, facto completamente novo. Courbet soube gerir esse facto muito bem num exercício de uma dimensão inédita e foi o primeiro a tirar disso proveito, sabendo da apetência do público pelas imagens, pela inovação e sobretudo pela controvérsia

« Quand je ne serai plus contesté, je ne serai plus important »

São famosos pela identificação que lhe proporcionaram a barba assíria e a sua pose em o “ Le Violoncelliste, 1847” , a sua atitude de bebedor de cerveja e fumador de cachimbo e sobretudo o extraordinário e magnifico “Portrait de l´artist, dit Le desespere,1844-1854”, a verdadeira expressão realista do criador atormentado, incompreendido e solitário.
Toda esta profusão de máscaras e personagens contribuíram para a abundante presença de Courbet nos jornais da época nomeadamente ao nível das caricaturas, meio de crítica sarcástico comum na época.
A sua postura como artista é assim associada às múltiplas poses que assumiu nos auto- retratos, numa atitude de indiferença face ao olhar e ás criticas dos outros, que simboliza a sua verdadeira liberdade de criador.
As personagens que assume são associadas sempre a um passado de uma cultura literária e a uma herança cultural pictórica dando-lhe de alguma forma uma certa credibilidade mesmo que só assumida muito mais tarde.
O difícil equilíbrio instável desta tensão quase esquizofrénica iria marcar toda a sua vida pessoal e artística.
Ao se retratar transvesticamente o personagem Courbet substitui-se ao pintor Courbet, numa espécie de antecipação a uma realidade e a uma polémica contemporânea : a ausência da realidade para planos pictóricos e estruturas virtuais num processo de desaparecimento gradual do conceito de realidade e real numa substituição estrutural por novos planos ou seja o aparecimento da nova realidade virtual.
Com Courbet o Real tinha começado a deixar de existir, paradoxo conceptual com o facto de ele ser associado a um movimento que tentou transpor para o espaço pictórico a própria realidade.
Podemos considerar que foi esse mesmo processo, inovador em Courbet, de transporte da realidade para o espaço pictórico, que iniciou a retirada de essência da realidade, subtraindo dela a substância, que lhe permitia ser a “material realidade real”.


Será que o Real existe mesmo?


O extremo conceptual desta questão é magnificamente simbolizado no filme Matrix (1999) dos irmãos Wachowski, onde esta lógica atinge o seu clímax: a realidade real que nos passa pelos nossos sentidos não é mais que uma realidade virtual gerada pelo “grande computador” . Ao despertar para a verdadeira realidade o herói apenas vê ruínas e destruição. Ao ser acolhido nesta realidade real, Morpheus, o chefe da resistência, reserva-lhe a saudação que marcou e marca as gerações que já hoje vivem na abstracção do Real:

“ Bem vindo ao deserto do real”


Destino do realismo. O poder das imagens


Charles Baudelaire, grande anunciador dos tempos modernos, já tinha dado o mote:

Glorifier le culte des images ( ma grande, mon unique, ma primitive passion)”

A procura durante o séc. XIX de um meio de reprodução exacta das imagens foi uma necessidade e uma exigência: a Ciência estava já pronta para fornecer descoberta da fotografia mas o século em geral e a arte em particular já há muito que estavam prontos para a receber.
O texto começa a ceder espaço para a imagem. A fotografia e a impressão, a imagem e o livro; esta dupla oposição retrata a evolução da nossa cultura. O lisivel e o visível.
É com o sec. XIX que se inicia o fim da civilização do livro e em parte, do raciocínio estruturado só em frases. A velocidade apanhou o homem moderno e impôs-lhe a necessidade de pensar mais depressa. A sensação e a resposta da impressão da imagem no cérebro são instintivas e a sua percepção imediata e simultânea.
Podemos dizer que o signo suplantou o verbo, ultrapassando as palavras, pela imagem.
Estamos perante o império da imagem em que a memória visual é condição de sobrevivência.
Este processo teve origem no sec. XIX e Gustave Courbet em muito contribuiu para o seu desenvolvimento. Assumindo-se como realista e como pintor da realidade, a pintura de Courbet não deixa de traduzir a poesia das suas emoções em imagens. Toda a criação por mãos humanas aplica uma certa concepção de beleza e exprime uma certa presença psicológica, não sendo nunca neutra, nem plenamente plástica, nem plenamente realista.
E foi assim que o realismo, à força de se suplantar como representação total, deu pistas para as futuras livres interpretações do real, dependentes de cada personalidade e de cada sensibilidade. Estava aberto o caminho para o impressionismo.


Referencias Bibliográficas:

1 ZIZEK, SLAVOJ (2002) : Bem-Vindo ao deserto do Real. Lisboa. Relógio de Água.
2 DE CASTRO, FERREIRA (1972) : “As maravilhas artísticas do mundo” in Obras Completas. Lisboa. Guimarães Editores
3 LACAN, JACQUES (1966) : Écrits. Paris. Le Seuil
4 ARNHEIM, RUDOLF (1986): New Essays on the Psychology of Art. Bekerley.UCP














quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A construção do mito de Veneza

Seria difícil sobreestimar o valor das lições que o estudo aprofundado dessa estranha e poderosa cidade pode proporcionar. Sua história, apesar dos trabalhos de inúmeros cronistas, ainda permanece vaga, perpassada de sombra e de luz, semelhante à orla longínqua de seu oceano, onde a rebentação da onda no banco de areia se confunde com o céu .”1

Abordagem sintética sobre o mito da cidade de Veneza a partir da análise do quadro “ O Leão de S.Marcos “2 de Vittore Carpaccio3


Ao recordar a minha visita ao palácio dos Doges em Veneza e no meio de dezenas de salas carregadas de arte e história, não posso esquecer o momento em que pela primeira vez, vi ao vivo o célebre “ Leão de S.Marcos”. Foi e é na sala Grimani junto a outros quadros que representam também o leão alado, que se encontra esta extraordinária obra prima de Carpaccio: as patas anteriores sobre a terra e as posteriores sobre o mar, simbolizando a dominação da Republica sobre a terra e sobre o mar.
A cidade de Veneza ou a Sereníssima como é vulgar chamá-la edificou-se sobre modelos reais e imaginários que contribuíram para a construção do mito que servia de factor motivador e de união para os seus habitantes e de arma psicológica fortíssima contra os seus inimigos presentes e futuros.
Para essa construção muito contribuiu a arte e particularmente a pintura. O Leão de S. Marcos é uma obra emblemática que oficiosamente se tornou o símbolo da Sereníssima Republica de Veneza.
Em termos do movimento artístico e cultural renascentista, Veneza foi a ultima Cidade Estado italiana a iniciar o processo do “Rinascità” fruto da sua politica geoestratégica orientalista, só invertida após a conquista de Bizâncio pelos turcos otomanos em 1453. Foi por esta razão que Veneza desenvolveu os modelos bizantinos até muito tarde no Quattrocento.
A dimensão internacionalista e orientalista de Veneza foi assim substituída por uma politica de aproximação a ocidente à “ la terra ferma” o que conduziu a uma aproximação aos modelos renascentistas já em desenvolvimento em cidades como Florença, Pádua e Milão.

1-A cidade de Veneza : contexto histórico, cultural e sociopolítico

“O espaço em si pode ser primordialmente dado, mas a organização e o sentido do espaço são produto da translação, da transformação e da experiência sociais.
O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada, comparável a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes ao estar vivo, exactamente da mesma maneira que a história humana representa uma transformação social do tempo.” 4

A cidade de Veneza nasceu com o Palácio dos Doges em 810: era um palácio fortificado que tomava posição estratégica no controlo do comércio do Mediterrâneo oriental. A ligação com Bizâncio dá-lhe uma situação estratégica e de crescimento exponencial ao nível comercial, militar e político. A organização política era peculiar: apesar de ser uma Republica, os Doges eram eleitos para a vida.
A imensa rede de interesses comerciais e políticos fizeram dos Venezianos mestres na arte política e exímios marinheiros.
A relação com Bizâncio sempre foi uma constante na política Veneziana e na geo- estratégica do Mediterrâneo Oriental.Veneza era assim uma potência marítima incontestável.
Não é de estranhar que Veneza incorpore os modelos artísticos bizantinos e um certo orientalismo.
Estes modelos mantiveram-se até meados do Quatrocentto .Após a tomada de Bizâncio a agulha de Veneza volta-se definitivamente para ocidente, tornando-se no derradeiro bastião ocidental perante a ameaça otomana latente.
O mundo também tinha mudado a ocidente e novas potencias dominavam agora o cenário politico, militar e comercial.
Os complicados períodos por que passou estrutura constitucional do Estado Veneziano obrigaram a uma separação entre a nobreza e a plebe, sendo o governo colocado nas mãos dos nobres, excluindo assim as influências do Doge. No primeiro período, de novecentos anos, o povo outorgou o poder ao mais digno, o doge. Este período encerra a ascensão de Veneza nos seus mais destacados progressos. No segundo período, de quinhentos anos, existiu uma Veneza oprimida pela guerra de Chiozza e perturbada pela conspiração interna, a de Faliero. Este período encerra a principal luta de sua história. O coração de Veneza batia por suas guerras. As suas vitórias deveram-se a heroísmos individuais provados pela sucessão de acções terríficas, sob as quais o seu poder se consolidou.

1.2 S. Marcos Evangelista , uma visita à Basílica

“Imponente sobre a praça do mesmo nome, a Basílica de S.Marcos, de estilo puro bizantino, foi construída para guardar as relíquias de S.Marcos, evangelista, patrono da cidade.
O primeiro núcleo da Basílica foi construído em 829, mas o conjunto actual é um culminar de construções ao longo dos séculos, que resultaram num monumental edifício de cinco cúpulas, de 4000 metros quadrados de obras de arte e tesouros da humanidade, resultado de milhares de horas de trabalho de artesão e artistas.
Sendo também a catedral de Veneza, presenciou acontecimentos marcantes da história do mundo ocidental. Quinhentas magníficas colunas suportam a estrutura, num emoldurado de mosaicos de uma beleza impressionante.
Para impor a sua independência em relação a Roma, Veneza sentiu necessidade de rumar a Alexandria e resgatar as relíquias de S.Marcos Evangelista, para as depositar junto ao altar da Basílica.
A famosa "Pala de Ouro" ofusca pela sua grandeza e riqueza; altar de ouro e pedras preciosas: 250 painéis de valor incalculável.
Ao circular e apreciar a Basílica, apercebemo-nos do real poder e riqueza que a Republica Veneziana conseguiu ao longo dos séculos.
"Veneza, capital da liberdade, paz e justiça.....terra dos homens honrados"
Nunca uma terra acolheu tantos e bons homens e nenhuma foi tão conhecida pelo equilíbrio da sua governação e pela continuidade e equidade da sua justiça ao longo dos séculos.
Estava perante a descoberta pessoal do famoso leão alado, que representa S.Marcos e Veneza, o seu poder na terra e nos mares, com duas patas na terra e duas no oceano.
Tinha de esperar mais um pouco para entrar no Palácio dos Doges, mesmo ao lado da Basílica para ver o extraordinário quadro de Carpaccio. “5

1.3 Visão pessoal do Palácio dos Doges

“De fora parece-nos pequeno, de dimensão razoavelmente normal. Ao entrarmos tomamos consciência da sua impressionante dimensão e da sua riqueza emblemática.
Residência de cerca de 120 Doges, que governaram Veneza de 697 a 1797, o Pallazo Ducale é uma extraordinária mistura de estilos: bizantino, gótico e renascentista.
Salas a perder de vista, salões enormes (está lá a maior sala da Europa),quase todas as salas estão pintadas por mestres venezianos, que transformaram o palácio num autêntico museu: Carpaccio,Ticiano,Tintoretto e Bellini deixaram a sua marca em paredes,tectos,painéis, num verdadeiro hino à criação humana. Aqui está a maior tela do mundo, de Tintoretto; beleza sem limites e de dimensões impressionantes.
Arte em estado puro, onde toda uma civilização se revela e onde o espírito da humanidade fica registado. A alma humana registada.
Mais natural e sóbrio que Versalhes, menos rico mas mais ecléctico que o palácio dos riquíssimos Ioussoupov em S.Petersbourg, mais imponente e importante do que o mongol, escarlate e fantástico Fatehpur Sikri,construído no meio do deserto do Rajastão, na Índia.
Salas de governo, de tribunais, de estratégia, de análise, do senado, de armas, aposentos sem fim, numa sucessão alucinatória de riqueza e imponência.
Confesso que me espantei ao me aperceber da real importância e dimensão da Republica Veneziana. Lacuna pessoal.
Virada desde sempre para oriente, foi lá que criou os laços e as ligações necessárias e suficientes, que lhe permitiram manter-se durante tantos séculos, como símbolo, mito e ícone da civilização e do poder ocidental.
Justiça, fraternidade e equidade são outras das características desta República que inspiraram o respeito por todo o mundo então conhecido.
Porta da Europa a Oriente, Veneza ajudou a propagar e divulgar o património cultural e civilizacional ocidental.
Todo o caldeirão cultural que era Veneza, foi propício ao surgimento de várias gerações de artistas, simplesmente fenomenais, onde figuram quatro dos meus preferidos, verdadeiros génios: Vivaldi e Monteverdi no esplendor do barroco musical; Carpaccio e Canaletto, em momentos diferentes, expoentes máximos da pintura.
É dentro do Pallazzo Ducalle que se situa a ponte mais famosa do mundo, a ponte dos suspiros,símbolo do barroco e que liga as prisões ao palácio. Suspiros, porque os condenados costumavam suspirar ao por lá passar, vindos das salas de audiência; suspiravam ao ver o sol e o mar pela última vez.
Também eu suspirei, mas de alegria por poder estar ali, muitos séculos depois e beber tanto de uma sociedade e de uma civilização.” 5

2-O mito construído

“(...) é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela história: não poderia de modo algum surgir da “natureza” das coisas.” 6

A criação do mito de uma cidade é algo de complexo e intemporal. Entramos num labirinto de ideias, de imagens, cheiros e lugares oníricos. Veneza, construída sobre estacas, onde o gótico desenvolveu uma fantasia , lugar em que a magnificência de cor e decoração se conjuga como pensamento da estética bizantina. Foi a Sereníssima República, cenário de casas com peitoris de gerânios, de gôndolas negras e elegantes, da Piazza San Marco. Deixando-nos conduzir pelo sombrio labirinto dos calli, flanqueando lúgubres fachadas palacianas, descobre-se a magia da soberana cidade-água, a Sereníssima.
O pulsar do coração de Veneza é simbolizado pela própria construção da cidade, do mito.
O mito requisita uma reflexão especulativa, concretiza rupturas de limites. Talvez verificar a verdade que existe no mito seja a busca de uma ilusão que o mesmo contém. O mito constrói-se no passar do tempo. Segundo Barthes o mito é uma fala, e tudo pode ser mito, uma vez que seu universo é infinitamente sugestivo.7
Veneza transmite a emoção de uma grandeza glorificada a cada esquina em cada obra de arte.
“Os quadros acompanharam a edificação das primeiras arquitecturas, quando não as precederam e assim entende-se o apoio que deram ao Conselho dos Dez, preocupado com o inculcar em seus compatriotas o sentido de grandeza de sua cidade. Carpaccio e Bellini não nos deram apenas o retrato de uma cidade (…) são cheios de uma vontade inclinada para a grandeza; eles estabelecem uma ligação concreta entre o cenário material da vida corrente e as lendas que os dirigentes queriam ver, a promessa superior dos destinos gloriosos. Essas obras engendraram a visão de um espaço imaginário cujas coordenadas não são fornecidas apenas pela habilidade do artista em manejar linhas ou os valores luminosos; elas materializam um espaço ideal a que a época atribui justamente um valor positivo. Por conseguinte é natural que o Quatrocentto, que acreditou nas imagens, tenha criado uma série de figuras do espaço fundadas numa renovação, mas não em uma recusa da função mítica.” 8

3- “O Leão de S. Marcos “2

O leão alado sempre foi o símbolo da Republica Veneziana, como emblema tradicional do Evangelista S. Marcos, patrono da cidade e santo protector desde o século IX.
A posse das suas relíquias fizeram de Veneza um quase Estado apostólico, ajudando a criar um mito de quase mil anos.
O mesmo se poderá dizer com o leão alado, espelho do imenso poder da Sereníssima Republica e das suas intenções pacificas.
Carpaccio seguiu os moldes iconográficos de representação simbólica que a Republica ditava produzindo uma das mais impressionantes e emblemáticas obras primas da civilização ocidental.
Do lado esquerdo a Piazza di San Marco , o Palácio dos Doges, a Torre e a Basílica como pano de fundo: a representação do poder de Veneza é completa e perfeita.
“Pax tibi Marce Evangelista meus” – Que a paz esteja contigo Marcos, meu Evangelista, dizem as palavras escritas no livro na pata direita do leão.
Do lado direito a representação do poder marítimo e domínio dos mares de Veneza: os navios a saírem do famoso arsenal.
Inicialmente o quadro foi pintado para decorar uma das salas do Governo da Republica.
Hoje encontra-se na sala Grimani no Palácio dos Doges.

4- Vittore Carpaccio

Em dialecto veneziano o seu nome era Scarpazza mas muitos dos seus trabalhos receberam a sua assinatura latina: Carpathius.
Carpaccio apenas saiu por uma vez de Veneza para uma curta visita a Roma. A sua formação não é bem conhecida mas as suas influencias estéticas são definitivamente Gentile, Giovanni Bellini e Antonello da Messina.
É conhecido pelos seu quadros de representação festiva que segundo a tradição veneziana incluem sempre uma representação de locais e figuras identificáveis pela população.
Carpaccio também é conhecido como retratista, principalmente antes de 1505, seus anos mais profícuos e de maior qualidade. Foi um dos primeiros a usar a tela regularmente, abandonando definitivamente o painel como suporte pictórico.
O seu traço era de uma singularidade facilmente identificável e a sua inteligente utilização da cor fez dele um antecipador das tendências que só viriam a desenvolver-se após o primeiro quartel do século XVI.

Referências bibliográficas:

1 RUSKIN, JOHN (1992): As pedras de Veneza. S.Paulo. Martins Fontes
2 LEÃO DE S.MARCOS (1516) : 130 x 368 cm ,Palácio dos Doges, Veneza
3 VITTORE CARPACCIO: Veneza 1460 /65 – Veneza 1525/26
4 SOJA, EDWARD W. (1993): Geografias pós-modernas a reafirmação do espaço na teoria social critica. Rio de Janeiro. Jorge Zahar
5 TERENAS, CARLOS(2006):O Palácio do Doges, Veneza. S. Marcos Evangelista, http://carlosterenas.spaces.live.com/
6 BARTHES, ROLAND (1972): Mitologias. S. Paulo. Perspectiva
7 MEYER, APARECIDA (1972): A Sereníssima sob o discurso da arte e da paixão.UFRJ
8 FRANCASTEL,PIERRE (1990) : “Nascimento de um Espaço – Mitos e geometria no Quattrocento “ in Pintura e Sociedade, RJ, Martins Fontes

O Espaço pictórico como imagem espacial do “novo” mundo

(..) la perspective est la forme symbolique d´un monde d´où Dieu se serait absenté, et qui devient un monde cartésien, celui de la matière infinie.Les lignes de fuite d´une perspective sont parallèles et se rejoignent dans l´infini, le pont de fuite est donc à l´infini.Panofski estime que la perspective est la forme symbolique d´un univers déthéologisé , où l´infini n´est plus seulement en Dieu, mais réalisé dans la matière en acte sur terre. 1

Recensão crítica do texto “Nascimento de um Espaço – Mitos e geometria no Quattrocento” de Pierre Francastel 2


Ao analisar este extraordinário texto somos transportados a uma parte essencial da História da civilização ocidental, o Renascimento , verdadeiro despertar de valores adormecidos e esquecidos durante quase um milénio.
Resumir o Quattrocento à invenção da perspectiva e elevá-la como único valor objectivo e permanente deste período é a mensagem que Pierre Francastel (PF) nos tenta transmitir.
PF assume assim muito claramente a defesa de um período riquíssimo da nossa História como um todo em que a invenção da perspectiva se assume como técnica simbólica e demonstrativa de uma evolução societária .
O Espaço pictórico é testemunho do triunfo de um Humanismo que brotava das cinzas de uma Idade Média terminal e agonizante.
Hubert Damish disse que a perspectiva não se limitava a mostrar mas a pensar um novo mundo.
As obras de pintura passam definitivamente a ser sistema de signos com significados e significantes demonstrativos de uma época . “ Uma obra de arte é um meio de expressão e de comunicação (…) “
Pela primeira vez na História estávamos perante um movimento que se reconhecia num espaço e num tempo, com perfeita consciência de si próprio.
O Espaço pictórico torna-se assim símbolo e pela primeira vez signo, sujeito a leis e regras de expressão plástica, que conduzem à demonstração do desabrochar de uma sociedade e civilização.

A perspectiva foi inventada em Florença entre 1420 e 1450. Foi um grupo de homens visionários, que após séculos de erro, desenvolveram uma forma de expressão plástica que correspondia ao primeiro estádio superior de uma evolução civilizacional.
A perspectiva assume assim uma dimensão simbólica que serve de base a toda e qualquer interpretação da História e da civilização modernas.
Pela primeira vez a expressão plástica estava relacionada com a expressão literária num caminho conjunto que não mais iriam abandonar até aos nossos dias. Petrarca e seu discípulo Boccacio foram veículos de um humanismo crescente que concentrava no Homem todas as preocupações da Humanidade em completa oposição ao pensamento medieval.
O fim da Idade Média era uma realidade e doravante as referencias artísticas, culturais e civilizacionais passaram a ser as de um passado clássico , abruptamente destruído por vagas sucessivas de horror que conduziu a um período de trevas de quase mil anos.
O sistema de representação espacial foi apenas a forma como um grupo de artistas transportou para a arquitectura e pintura o saber acumulado e a imagem de um mundo em mudança.
Desde o sistema de poder e politico com as suas relações nem sempre claras até à nova imagem de um mundo que deixava de ter um centro e de ser finito, esta nova representação assume assim dimensões simbólicas bem maiores do que à partida mesmo se poderia ter pensado.
As novas relações sociais emergiam também nas novas formas de representação na nova forma de descrever o mundo, que se dava lentamente a conhecer.
Podemos considerar assim a perspectiva como Erwin Panofsky a considerou, uma forma simbólica? 3
Considero que a História cultural negligencia muita da produção artística em termos de texto e imagens, produção que por vezes serve de base e reequaciona novas dimensões na explicação histórica.
Este movimento de interpretação individual da obra de arte enquanto testemunho do pensamento e da civilização humana é característico dos “ Formalistas Russos” e do Movimento Norte-Americano “ New Criticism”.
A individualização para análise da perspectiva enquanto estrutura assume importância não só formal e académica mas enquanto expressão de novos horizontes e novos olhares.
A nova questão espacial foi colocada e resolvida por Brunelleshi ao terminar a cúpula da catedral de Florença. A partir daqui, tinha-se entrado numa outra época, uma época que inventou e desenvolveu métodos e capacidades representativas que durante séculos satisfizeram as necessidades de toda uma civilização, a ocidental.
A cúpula de Santa Maria del Fiore é o expoente estético baseado pela primeira vez em soluções matemáticas. Estamos perante uma novo processo e um novo sistema.
Este novo processo encarava o espaço como um conjunto de linhas e planos que envolvia o espaço.
O espaço passa a ser envolvido e a envolver através da construção de proporções harmoniosas em função da distância do observador.
Uma nova Era aparecia lentamente, como aparecem todos os movimentos de transformação.
Pierre Francastel explica muito bem todo este processo no seu texto fazendo uma descrição muito pormenorizada.
Através dele ficamos também a saber que toda a pintura italiana do Quattrocento deriva da arte de cenografia do teatro antigo e medieval.
Além de Brunellesci, Donatelo, Masaccio, Angelico e Masolino, foram nomes de vanguarda neste movimento artístico e sobretudo cultural.
Todos eles trataram a representação e a perspectiva como uma nova forma de ver e sentir o mundo.
A segunda vaga de artistas do Renascimento é mais consciente do seu percurso; contam-se entre eles Pierro de la Francesca, Filippo Lippi, Bellini e Carpaccio.Mas a grande referência dourinária é sem dúvida Alberti.
Todos eles contribuem para a formação de um estilo , baseado na perspectiva linear, esse conceito preciso mas ao mesmo tempo vago, que vai suportar todo um sistema baseado na assumpção de que o espírito humano assume o espaço como permanente.
O renascimento é apenas uma etapa na grande aventura do conhecimento. A perspectiva euclidiana apenas nos induz a ilusão de um espaço, que todo o ser humano pode ou não sensibilizar.
A figuração plástica não fez mais do que adaptar-se a um estádio do desenvolvimento humano e cientifico da sociedade ocidental.
Considerar que a representação pictórica do Renascimento materializa a visão natural do homem é muito abusivo e redutor. Pierre Francastel é claro na defesa deste pensamento.
Mais do que isso o autor recorda-nos que a análise de uma obra de arte deve ser completamente isenta de padrões de beleza ou gosto e baseada em procedimentos e fundamentos históricos e intelectuais de um sistema ligado a todo um conjunto de valores passados.
A análise estruturalista, com raízes numa superfície de representação, em que o signo pictórico assume a possibilidade de existência de um significado redundante perante um significante valorizado, conduz-nos sempre a interpretações diversas da obra de arte. 4
Pierre Francastel desenvolve depois a teoria de Alberti, de que a pintura seria exclusivamente a figuração do mundo visível e de como ela contaminou toda a representação pictórica ocidental por mais de dois séculos.
Para além disso a arte como a concebemos hoje é a captação do gosto e das ideias de uma época.
É depois do Renascimento que a arte caminha paralelamente aos desenvolvimentos e progressos cientifico e sociais num processo revolucionário que foi a base de todo o esplendor humano da sociedade ocidental.
Foi a libertação do espírito enquanto fluido catalisador da criação que permitiu que o Renascimento tivesse lugar.
Por muito que se queira extrapolar , a invenção da perspectiva como símbolo de uma visão própria de ver o mundo e de representação de uma concepção geral do universo, não é mais do que a transposição para o espaço pictórico dos avanços científicos que em determinado momento, determinado numero de homens teve o privilégio de reinterpretar.


A arte do Quattrocento é muito influenciada pela arquitectura pois esta sempre se baseou num equilíbrio de sistemas lineares.
O sistema de representação é mais mental do que objectivo, podendo mesmo dizer-se que a arquitectura foi pintada mesmo antes de ser construída.
Também este movimento não foi um movimento brusco e repentino mas sim o resultado de um trabalho de diversas gerações de artistas. A mudança de atitude mental característica do homem do Renascimento foi um processo progressivo de mais de cem anos.
A arte apenas exprime os valores e as forças vivas de uma sociedade; neste caso e pela primeira vez assistimos a este movimento eterno.
A dualidade de intenções e métodos demonstram-nos um certo primitivismo, que o próprio Francastel reconhece existir no Renascimento. É bem este primitivismo que nos permite perceber o mito enquanto forma de pensamento e a sua utilização simultânea ao pensamento racional e cientifico. O mundo é assim representado em expressões sublimares de imagens numa mesma composição e numa complexidade dita primitiva: estamos perante uma objectivação mítica e renovada em que as distâncias psíquicas são pela primeira vez expressas.
A criação do mito e de mitos é exemplarmente expressa por Bellini e sobretudo Carpaccio ao criarem o mito de uma cidade e de um Império, o Veneziano. A relação ténue entre a vida social e politica, o mito, a motivação e a união de um povo é pela primeira vez encarnada pelo Renascimento.
Podemos dizer que o sistema de representação inventado no Renascimento e que conduziu à perspectiva é apenas um sintoma de uma transformação em curso na mente individual de alguns eleitos .

Como conclusão, Pierre Francastel conduz-nos por linhas de raciocínio extremamente perspicazes e inovadoras; afirma ele que o sistema de representação do Quattrocento assenta numa concepção centralizada na acção humana e no homem como actor principal de uma vida harmoniosa neste planeta. Esta é a definição perfeita de um Humanismo nascente.
Este sistema serviu como espaço de representação enquanto o homem acreditou no seu lugar e no espaço terreno enquanto lugar privilegiado e mítico .
O espaço nasceu ; a sua concepção enquanto representação centrada numa humanidade valorizada impôs um modelo e um sistema por mais 4 séculos.


1 ARASSE, DANIEL (2004) : « L´invention de la perspective » in Histoire de peintures,Paris,Gallimard
2 FRANCASTEL,PIERRE (1990) : “Nascimento de um Espaço – Mitos e geometria no Quattrocento “ in Pintura e Sociedade, RJ, Martins Fontes
3 PANOFSKY, ERWIN (1991): Perspective as Symbolic Form, New York, Zone Books
4TERENAS,CARLOS(2007) : A originalidade da vanguarda,. http://carter-carter-carter.blogspot.com/