quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A construção do mito de Veneza

Seria difícil sobreestimar o valor das lições que o estudo aprofundado dessa estranha e poderosa cidade pode proporcionar. Sua história, apesar dos trabalhos de inúmeros cronistas, ainda permanece vaga, perpassada de sombra e de luz, semelhante à orla longínqua de seu oceano, onde a rebentação da onda no banco de areia se confunde com o céu .”1

Abordagem sintética sobre o mito da cidade de Veneza a partir da análise do quadro “ O Leão de S.Marcos “2 de Vittore Carpaccio3


Ao recordar a minha visita ao palácio dos Doges em Veneza e no meio de dezenas de salas carregadas de arte e história, não posso esquecer o momento em que pela primeira vez, vi ao vivo o célebre “ Leão de S.Marcos”. Foi e é na sala Grimani junto a outros quadros que representam também o leão alado, que se encontra esta extraordinária obra prima de Carpaccio: as patas anteriores sobre a terra e as posteriores sobre o mar, simbolizando a dominação da Republica sobre a terra e sobre o mar.
A cidade de Veneza ou a Sereníssima como é vulgar chamá-la edificou-se sobre modelos reais e imaginários que contribuíram para a construção do mito que servia de factor motivador e de união para os seus habitantes e de arma psicológica fortíssima contra os seus inimigos presentes e futuros.
Para essa construção muito contribuiu a arte e particularmente a pintura. O Leão de S. Marcos é uma obra emblemática que oficiosamente se tornou o símbolo da Sereníssima Republica de Veneza.
Em termos do movimento artístico e cultural renascentista, Veneza foi a ultima Cidade Estado italiana a iniciar o processo do “Rinascità” fruto da sua politica geoestratégica orientalista, só invertida após a conquista de Bizâncio pelos turcos otomanos em 1453. Foi por esta razão que Veneza desenvolveu os modelos bizantinos até muito tarde no Quattrocento.
A dimensão internacionalista e orientalista de Veneza foi assim substituída por uma politica de aproximação a ocidente à “ la terra ferma” o que conduziu a uma aproximação aos modelos renascentistas já em desenvolvimento em cidades como Florença, Pádua e Milão.

1-A cidade de Veneza : contexto histórico, cultural e sociopolítico

“O espaço em si pode ser primordialmente dado, mas a organização e o sentido do espaço são produto da translação, da transformação e da experiência sociais.
O espaço socialmente produzido é uma estrutura criada, comparável a outras construções sociais resultantes da transformação de determinadas condições inerentes ao estar vivo, exactamente da mesma maneira que a história humana representa uma transformação social do tempo.” 4

A cidade de Veneza nasceu com o Palácio dos Doges em 810: era um palácio fortificado que tomava posição estratégica no controlo do comércio do Mediterrâneo oriental. A ligação com Bizâncio dá-lhe uma situação estratégica e de crescimento exponencial ao nível comercial, militar e político. A organização política era peculiar: apesar de ser uma Republica, os Doges eram eleitos para a vida.
A imensa rede de interesses comerciais e políticos fizeram dos Venezianos mestres na arte política e exímios marinheiros.
A relação com Bizâncio sempre foi uma constante na política Veneziana e na geo- estratégica do Mediterrâneo Oriental.Veneza era assim uma potência marítima incontestável.
Não é de estranhar que Veneza incorpore os modelos artísticos bizantinos e um certo orientalismo.
Estes modelos mantiveram-se até meados do Quatrocentto .Após a tomada de Bizâncio a agulha de Veneza volta-se definitivamente para ocidente, tornando-se no derradeiro bastião ocidental perante a ameaça otomana latente.
O mundo também tinha mudado a ocidente e novas potencias dominavam agora o cenário politico, militar e comercial.
Os complicados períodos por que passou estrutura constitucional do Estado Veneziano obrigaram a uma separação entre a nobreza e a plebe, sendo o governo colocado nas mãos dos nobres, excluindo assim as influências do Doge. No primeiro período, de novecentos anos, o povo outorgou o poder ao mais digno, o doge. Este período encerra a ascensão de Veneza nos seus mais destacados progressos. No segundo período, de quinhentos anos, existiu uma Veneza oprimida pela guerra de Chiozza e perturbada pela conspiração interna, a de Faliero. Este período encerra a principal luta de sua história. O coração de Veneza batia por suas guerras. As suas vitórias deveram-se a heroísmos individuais provados pela sucessão de acções terríficas, sob as quais o seu poder se consolidou.

1.2 S. Marcos Evangelista , uma visita à Basílica

“Imponente sobre a praça do mesmo nome, a Basílica de S.Marcos, de estilo puro bizantino, foi construída para guardar as relíquias de S.Marcos, evangelista, patrono da cidade.
O primeiro núcleo da Basílica foi construído em 829, mas o conjunto actual é um culminar de construções ao longo dos séculos, que resultaram num monumental edifício de cinco cúpulas, de 4000 metros quadrados de obras de arte e tesouros da humanidade, resultado de milhares de horas de trabalho de artesão e artistas.
Sendo também a catedral de Veneza, presenciou acontecimentos marcantes da história do mundo ocidental. Quinhentas magníficas colunas suportam a estrutura, num emoldurado de mosaicos de uma beleza impressionante.
Para impor a sua independência em relação a Roma, Veneza sentiu necessidade de rumar a Alexandria e resgatar as relíquias de S.Marcos Evangelista, para as depositar junto ao altar da Basílica.
A famosa "Pala de Ouro" ofusca pela sua grandeza e riqueza; altar de ouro e pedras preciosas: 250 painéis de valor incalculável.
Ao circular e apreciar a Basílica, apercebemo-nos do real poder e riqueza que a Republica Veneziana conseguiu ao longo dos séculos.
"Veneza, capital da liberdade, paz e justiça.....terra dos homens honrados"
Nunca uma terra acolheu tantos e bons homens e nenhuma foi tão conhecida pelo equilíbrio da sua governação e pela continuidade e equidade da sua justiça ao longo dos séculos.
Estava perante a descoberta pessoal do famoso leão alado, que representa S.Marcos e Veneza, o seu poder na terra e nos mares, com duas patas na terra e duas no oceano.
Tinha de esperar mais um pouco para entrar no Palácio dos Doges, mesmo ao lado da Basílica para ver o extraordinário quadro de Carpaccio. “5

1.3 Visão pessoal do Palácio dos Doges

“De fora parece-nos pequeno, de dimensão razoavelmente normal. Ao entrarmos tomamos consciência da sua impressionante dimensão e da sua riqueza emblemática.
Residência de cerca de 120 Doges, que governaram Veneza de 697 a 1797, o Pallazo Ducale é uma extraordinária mistura de estilos: bizantino, gótico e renascentista.
Salas a perder de vista, salões enormes (está lá a maior sala da Europa),quase todas as salas estão pintadas por mestres venezianos, que transformaram o palácio num autêntico museu: Carpaccio,Ticiano,Tintoretto e Bellini deixaram a sua marca em paredes,tectos,painéis, num verdadeiro hino à criação humana. Aqui está a maior tela do mundo, de Tintoretto; beleza sem limites e de dimensões impressionantes.
Arte em estado puro, onde toda uma civilização se revela e onde o espírito da humanidade fica registado. A alma humana registada.
Mais natural e sóbrio que Versalhes, menos rico mas mais ecléctico que o palácio dos riquíssimos Ioussoupov em S.Petersbourg, mais imponente e importante do que o mongol, escarlate e fantástico Fatehpur Sikri,construído no meio do deserto do Rajastão, na Índia.
Salas de governo, de tribunais, de estratégia, de análise, do senado, de armas, aposentos sem fim, numa sucessão alucinatória de riqueza e imponência.
Confesso que me espantei ao me aperceber da real importância e dimensão da Republica Veneziana. Lacuna pessoal.
Virada desde sempre para oriente, foi lá que criou os laços e as ligações necessárias e suficientes, que lhe permitiram manter-se durante tantos séculos, como símbolo, mito e ícone da civilização e do poder ocidental.
Justiça, fraternidade e equidade são outras das características desta República que inspiraram o respeito por todo o mundo então conhecido.
Porta da Europa a Oriente, Veneza ajudou a propagar e divulgar o património cultural e civilizacional ocidental.
Todo o caldeirão cultural que era Veneza, foi propício ao surgimento de várias gerações de artistas, simplesmente fenomenais, onde figuram quatro dos meus preferidos, verdadeiros génios: Vivaldi e Monteverdi no esplendor do barroco musical; Carpaccio e Canaletto, em momentos diferentes, expoentes máximos da pintura.
É dentro do Pallazzo Ducalle que se situa a ponte mais famosa do mundo, a ponte dos suspiros,símbolo do barroco e que liga as prisões ao palácio. Suspiros, porque os condenados costumavam suspirar ao por lá passar, vindos das salas de audiência; suspiravam ao ver o sol e o mar pela última vez.
Também eu suspirei, mas de alegria por poder estar ali, muitos séculos depois e beber tanto de uma sociedade e de uma civilização.” 5

2-O mito construído

“(...) é a história que transforma o real em discurso, é ela e só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um fundamento histórico, visto que o mito é uma fala escolhida pela história: não poderia de modo algum surgir da “natureza” das coisas.” 6

A criação do mito de uma cidade é algo de complexo e intemporal. Entramos num labirinto de ideias, de imagens, cheiros e lugares oníricos. Veneza, construída sobre estacas, onde o gótico desenvolveu uma fantasia , lugar em que a magnificência de cor e decoração se conjuga como pensamento da estética bizantina. Foi a Sereníssima República, cenário de casas com peitoris de gerânios, de gôndolas negras e elegantes, da Piazza San Marco. Deixando-nos conduzir pelo sombrio labirinto dos calli, flanqueando lúgubres fachadas palacianas, descobre-se a magia da soberana cidade-água, a Sereníssima.
O pulsar do coração de Veneza é simbolizado pela própria construção da cidade, do mito.
O mito requisita uma reflexão especulativa, concretiza rupturas de limites. Talvez verificar a verdade que existe no mito seja a busca de uma ilusão que o mesmo contém. O mito constrói-se no passar do tempo. Segundo Barthes o mito é uma fala, e tudo pode ser mito, uma vez que seu universo é infinitamente sugestivo.7
Veneza transmite a emoção de uma grandeza glorificada a cada esquina em cada obra de arte.
“Os quadros acompanharam a edificação das primeiras arquitecturas, quando não as precederam e assim entende-se o apoio que deram ao Conselho dos Dez, preocupado com o inculcar em seus compatriotas o sentido de grandeza de sua cidade. Carpaccio e Bellini não nos deram apenas o retrato de uma cidade (…) são cheios de uma vontade inclinada para a grandeza; eles estabelecem uma ligação concreta entre o cenário material da vida corrente e as lendas que os dirigentes queriam ver, a promessa superior dos destinos gloriosos. Essas obras engendraram a visão de um espaço imaginário cujas coordenadas não são fornecidas apenas pela habilidade do artista em manejar linhas ou os valores luminosos; elas materializam um espaço ideal a que a época atribui justamente um valor positivo. Por conseguinte é natural que o Quatrocentto, que acreditou nas imagens, tenha criado uma série de figuras do espaço fundadas numa renovação, mas não em uma recusa da função mítica.” 8

3- “O Leão de S. Marcos “2

O leão alado sempre foi o símbolo da Republica Veneziana, como emblema tradicional do Evangelista S. Marcos, patrono da cidade e santo protector desde o século IX.
A posse das suas relíquias fizeram de Veneza um quase Estado apostólico, ajudando a criar um mito de quase mil anos.
O mesmo se poderá dizer com o leão alado, espelho do imenso poder da Sereníssima Republica e das suas intenções pacificas.
Carpaccio seguiu os moldes iconográficos de representação simbólica que a Republica ditava produzindo uma das mais impressionantes e emblemáticas obras primas da civilização ocidental.
Do lado esquerdo a Piazza di San Marco , o Palácio dos Doges, a Torre e a Basílica como pano de fundo: a representação do poder de Veneza é completa e perfeita.
“Pax tibi Marce Evangelista meus” – Que a paz esteja contigo Marcos, meu Evangelista, dizem as palavras escritas no livro na pata direita do leão.
Do lado direito a representação do poder marítimo e domínio dos mares de Veneza: os navios a saírem do famoso arsenal.
Inicialmente o quadro foi pintado para decorar uma das salas do Governo da Republica.
Hoje encontra-se na sala Grimani no Palácio dos Doges.

4- Vittore Carpaccio

Em dialecto veneziano o seu nome era Scarpazza mas muitos dos seus trabalhos receberam a sua assinatura latina: Carpathius.
Carpaccio apenas saiu por uma vez de Veneza para uma curta visita a Roma. A sua formação não é bem conhecida mas as suas influencias estéticas são definitivamente Gentile, Giovanni Bellini e Antonello da Messina.
É conhecido pelos seu quadros de representação festiva que segundo a tradição veneziana incluem sempre uma representação de locais e figuras identificáveis pela população.
Carpaccio também é conhecido como retratista, principalmente antes de 1505, seus anos mais profícuos e de maior qualidade. Foi um dos primeiros a usar a tela regularmente, abandonando definitivamente o painel como suporte pictórico.
O seu traço era de uma singularidade facilmente identificável e a sua inteligente utilização da cor fez dele um antecipador das tendências que só viriam a desenvolver-se após o primeiro quartel do século XVI.

Referências bibliográficas:

1 RUSKIN, JOHN (1992): As pedras de Veneza. S.Paulo. Martins Fontes
2 LEÃO DE S.MARCOS (1516) : 130 x 368 cm ,Palácio dos Doges, Veneza
3 VITTORE CARPACCIO: Veneza 1460 /65 – Veneza 1525/26
4 SOJA, EDWARD W. (1993): Geografias pós-modernas a reafirmação do espaço na teoria social critica. Rio de Janeiro. Jorge Zahar
5 TERENAS, CARLOS(2006):O Palácio do Doges, Veneza. S. Marcos Evangelista, http://carlosterenas.spaces.live.com/
6 BARTHES, ROLAND (1972): Mitologias. S. Paulo. Perspectiva
7 MEYER, APARECIDA (1972): A Sereníssima sob o discurso da arte e da paixão.UFRJ
8 FRANCASTEL,PIERRE (1990) : “Nascimento de um Espaço – Mitos e geometria no Quattrocento “ in Pintura e Sociedade, RJ, Martins Fontes

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