sábado, 1 de dezembro de 2007

A originalidade da vanguarda

Sendo a desconstrução um processo abstracto mas real, esta é essencialmente uma busca contínua perante a impossibilidade do sistema. Em cada um, a desconstrução surge como força de deslocamento e um limite à própria totalização do sistema. De facto, foi essa própria incapacidade circular do sistema que permitiu aos filósofos falar em sistema. Por natureza o sistema não funciona e pela desconstrução, enquanto processo de trabalho e análise, somos levados à disfuncionalidade do próprio sistema e ao desejo de sistema enquanto análise de relações de desajustamento. 1

A originalidade como fluxo contínuo da origem e de um sistema não original

Recensão crítica do ensaio de Rosalind Krauss, " A originalidade da vanguarda" 2

Até que ponto o molde das "Portas do Inferno" é considerada uma obra de arte original?
Sabemos que o original em gesso não estava acabado e que apenas foi terminado com base nos desenhos de A. Rodin. Também sabemos que o artista legou todos os seus pertences, todo o seu espólio e os direitos de reprodução ao Estado francês. Este facto pressupõe a liberdade de reprodução da sua obra. A limitação do número de reproduções foi apenas decidida pela Assembleia Nacional Francesa.

Porquê colocar em dúvida a autenticidade teórica da obra quando o sentimento que nos assalta ao ver esta obra contradiz esta afirmação.
Lembro-me do dia, faz alguns anos, que tive o privilégio de ver a reprodução das "Portas" no Museu Rodin em Paris.
Nada do que pode ser dito poderá alterar a minha forma de sentir aquele momento Considero o texto de R. Krauss confuso, misturando muitos conceitos teóricos, sem os desenvolver, tentando justificar uma opinião que, quanto a mim também não está suficientemente explícita.
Todos possuímos o nosso sistema de crenças e de juízos de valor, inclusive R.Krauss, quando tenta fazer uma análise estruturalista sem a desenvolver, não especificando o porquê do signo, o que é o significado e o significante e como é que encaixam na construção teórica que tenta sem sucesso fazer.
Se analisarmos pelo angulo de uma possível desconstrução verificamos também algumas incongruências. R.Krauss, enquanto parte integrante de um sistema que ela provavelmente contribuiu para edificar, é uma referência de análise das crenças e conceitos teóricos que pretende por em causa. Os juízos de valor emitidos para a possível desconstrução do sistema são eles também parte integrante do sistema.
Como muitos textos teóricos de História e de Critica de Arte este texto múltiplos conceitos, um pouco como montra de sapiência, sem nunca os desenvolver de uma maneira incisiva.
Na primeira parte do texto existe pois uma clara confusão de conceitos; inicialmente põe em questão a originalidade das "Portas" quando deveria falar de autenticidade e talvez em essência; mais à frente refere-se à autenticidade mas volta a confundir-se ao pegar como referência o texto de 1936 de Walter Benjamin " A obra de arte na época da
sua reprodução mecânica."3 Existe uma diferença básica enquanto meio de reprodução mecânica entre um molde que necessita de ser trabalhado para se poder reproduzir e um aparelho mecânico onde a técnica e só a técnica é que permite a sua reprodução. Estamos perante dois conceitos teóricos completamente diferentes; colocá-los todos no mesmo cesto considero algo ligeiro.
Aliás a referência ao texto de Walter Benjamin aparece um pouco desgarrada (mais um artigo na montra da sapiência) pois não aborda questões que esse mesmo texto desperta ou despertou, nomeadamente quanto à grande discussão que conseguiu promover entre os teóricos da escola de Frankfurt: Adorno considerava que Benjamim deveria separar o conceito de autor e de produtor da obra de arte: o verdadeiro artista seria aquele que encarava e levava a vida como a obra de arte numa consistência de autoria, produção e vivência que o identificasse como parte da obra de arte. Yves Klein, o monochrome, conseguiu integrar todos estes conceitos tornando-o no artista, no autor e produtor da obra de arte por excelência.
Ao regressar ao conceito de original e à cultura do original, Krauss volta a confundir os conceitos ao referenciar a originalidade e a modularidade no trabalho de Rodin.
Para mim a turbulência teórica chega a um limite com as referências a Rainer Maria Rilke; fica-se sem saber o porquê da referência a Rilke e desta citação ao " hino à originalidade de Rodin". Ao saltar de um conceito para outro conceito sem definição prévia induz o leitor a confundir os dois também.
Ora uma construção teórica tem de ser consistente, onde os alicerces têm de ser fortes, o que não acontece neste caso.
Voltamos novamente à cultura do original sem ter percebido a ideia de autenticidade e dos seus contornos teóricos. Aliás esta definição só virá mais à frente onde Krauss define que a reprodução autêntica, por isso original, é aquela que é feita próxima do momento estético da criação e sempre dentro do espartilho de uma coerência estilística deixada a uma subjectividade de uma prática de "connaisseur" e não de "connoisseur". Aliás este erro é de uma certa forma simbólico, não se chegando a saber se o é tipográfico, de tradução ou de essência de produção; voltaríamos assim num movimento circular e teórico que nos leva à autoria do texto, enquanto objecto literário: como possível definir a literatura enquanto tal, como obra de arte tendo em vista a sua inevitável reprodução tipográfica ou seja, mecânica?
Claro que neste caso não se coloca a questão porque o ensaio em análise não é definitivamente uma obra de arte. Mas se falarmos de " À la recherche du temps perdu" de Marcel Proust estamos perante outro tipo de cenário e que nos pode fazer pensar que todas as impressões feitas de tal obra não são mais que réplicas, que transmitem a verdadeira essência da obra, o sentimento e a emoção, o mesmo que senti ao ver as "Portas" do Inferno no jardim do Museu Rodin.
Ao ler esta primeira parte do texto sinto a vontade de dizer como Krauss : Fraude

Rosalind Krauss desenvolve depois uma análise do conceito de originalidade enquanto denominador comum dos chamados movimentos de vanguarda. Aqui concordo plenamente com as premissas teóricas da autora em que se refere à dissolução do passado como base de uma origem ou de um zero absoluto que a própria originalidade gera.
Estamos perante um sistema de autogeneração em que a entidade original faz de fronteira entre um "passado carregado de tradição" e um "presente experimentado de novo".
Assim a prática das vanguardas pressupõe sempre uma certa assumpção de originalidade de redefinição do zero, de um outro zero, de um recomeço eterno e circular.
Em relação à reticula enquanto suporte e enquanto rede considero que a autora recorre a conhecimentos e definições que não explica colocando o leitor enquanto receptor numa situação incómoda. Considero que algumas das conclusões prévias que realiza e das relações que estabelece apenas nos induzem numa confusão teórica destinada a nada provar. Conceitos e frases como: " a reticula colapsou a espacialidade da natureza sobre a superfície limitada de um objecto cultural. O resultado é proscrição da natureza e o discurso é um silêncio ainda maior.", induzem-nos a uma teorização negativa pois superlativa, pela indução transversal e não conceptual de valores inexistentes e conseguida através de um desvirtuamento lexical conducente à demonstração de uma sapiência relativa.
Chegamos assim via reticula, às origens da arte, ao pretenso momento zero, que pouco tem a ver com a pretensa originalidade nem tão pouco com o conceito de autenticidade.
Este sentimento de começo e de eterno retorno é exposto como tal de uma forma agora clara.
O redescobrimento da origem enquanto resultado de uma atitude vanguardista e de originalidade conduz-nos à dicotomia latente no discurso da arte moderna: originalidade repetição, múltiplo \ singular, único \ reprodutível, fraudulento \ autêntico, cópia \ original.

Posteriormente a autora regressa a uma pretensa análise estruturalista com raízes numa superfície de representação em que o signo pictórico assumiria a possibilidade de existência de um significado redundante perante um significante valorizado. Partindo daqui e como conclusão desta análise semiológica, R. Krauss afirma que os moldes de Rodin são um sistema de reproduções sem original. Considero esta afirmação desenquadrada da análise anterior, por isso nunca conclusiva.
Cópia será assim a condição teórica do original. O conceito de original é assim reintroduzido como prática do discurso artístico desde o sec.XIX, numa procura constante das marcas do original enquanto produto de uma originalidade reinventada.
De repente e sem conectores teóricos suficientes a autora transporta-nos para o universo particular de Jane Austen e a partir daí para a representação da paisagem enquanto modelo pictórico e depois inevitavelmente para o "Pitoresco".
As abordagens seguintes, sempre com referencias terceiras a definições do "Pitoresco", conduzem-nos a outro tipo de discussão e naturalmente a um desvio da linha de raciocínio que a autora tinha até aí tentado nos induzir.
A paisagem como elemento singular discorre de uma característica topográfica e de como ela fica registada na imaginação do artista.

Assim, e agora extraordinariamente, R.Krauss faz a ponte para o conceito de singularidade. Interrogo-me sobre as razões ao recurso discursivo do "Pitoresco" para a introdução do conceito de singularidade. É evidente que a subjectividade do artista ao reproduzir uma característica da natureza, a paisagem, é amplificada pela subjectividade do artista.
E, num movimento circular mas sem estruturação teórica, regressamos ao conceito inicial de múltiplo enquanto oposição de singular e de cópia enquanto actividade fundamental numa concepção de original.
Este turbilhão conceptual, por vezes impressionante, catapulta-nos para a ideia de cópia enquanto produto de um copiador intencional.
A referência ao "Musée des Copies" de 1834 em Paris, a Delacroix e a Monet introduzem-nos em novas frentes de discussão conceptualmente diferentes.
R.Krauss referencia indelevelmente o papel da cópia na prática pictórica do séc. XIX e as suas implicações no conceito do novo, original e do espontâneo.
Falar, nesta sequência de raciocínio, no conceito de espontaneidade é desajustada pois distorce e confunde o receptor; ao considerar a cópia como " ponto de partida para um desenvolvimento de um signo cada vez mais organizado e codificado de espontaneidade" realiza uma deriva teórica significativa que em nada contribui para a coerência do texto.
Seguidamente a autora introduz-nos abruptamente noutro conceito, o de instantaneidade, traduzido na "pochade" de Monet: a produção da série da Catedral de Rouen por Claude Monet permite a R. Krauss regressar aos conceitos bases da primeira parte do ensaio, numa espiral conceptual verdadeiramente descontínua : originalidade, origem e autenticidade. Este regresso tem uma vantagem pois permite à autora uma outra oportunidade de explicar e justificar os conceitos iniciais.
O processo estrutural e mimético da cópia não se limita à definição básica de uma cópia mas sim à questão da verosimilhança e\ ou reprodução de uma realidade.
Esta desconstrução foi bem definida por Jacques Derrida; uma origem enquanto ponto de partida e lugar de referência inscrito na memória colectiva, na essência do Ser, da Vida como nomeação contínua de um registo pretérito.
Originalidade será assim uma reinvenção da própria realidade que permite a assumpção da cópia como esplendor estético do Pós Modernismo.
Aqui concordo com a autora na sua afirmação que " terminou o tempo das vanguardas", dos manifestos e dos retornos forçados a uma origem, a um zero original.
Este processo é muito bem definido na parte final do ensaio, onde a autora nos remete para a essência da arte numa busca sem fim. A prática cultural de validação invalidação dos registos de nomeação conduzem à autenticação da obra como produto cultural.
Como a autora considero que este processo é uma nova perspectiva de reinvenção da
modernidade num ciclo sem fim.


1 TERENAS,CARLOS (2007) : D´ailleurs Derrida.
2 KRAUSS, ROSALIND (1985) : The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. New York . MYT
3 BENJAMIN, WALTER (1936) : L´oeuvre d´art à l`époque de sa reproduction mecanisée , in Écrits Français (1991) .Paris.Gallimard

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