domingo, 10 de junho de 2007

Samuel Beckett, o gozo do absurdo

«Do not despair: one of the thieves was saved. Do not presume: one of the thieves was damned » St.Augustine

Existem imagens que ficam como referência e cânones da civilização e da cultura ocidental. Samuel Beckett brindou-nos com algumas: Winnie, enterrada até ao pescoço em "Happy Days" e a árvore sob a qual Godot se fazia esperar.

Hoje arquétipos da nossa sociedade, estas imagens começaram por ser referências do teatro e do universo de Beckett.

O poder das imagens e da minúcia de Samuel Beckett é enorme e misterioso: elas ficam gravadas nas nossas memórias, atravessando gerações numa radicalidade de fronteira entre o absurdo e o irracional.

Beckett foi tão só, a chave do portal da actualidade das artes visuais e da criação absurda.

Mito da nossa cultura, prémio Nobel em 1969, Samuel Beckett estruturou o futuro das imagens e dos media, e comprometeu o Homem contemporâneo com a linha por si definida.

Riso (humor), nudez, queda, arvore, silencio, voz, vozes, ruínas.......o mundo de Beckett é hoje o nosso mundo.

"Avant-gardiste" radical

As coisas existem e acontecem sem sentido aparente. Esta sempre foi uma das máximas de Beckett na sua procura da essência inexistente e de uma forma que exprimisse o nada e o zero.

Obcecado pelos pormenores e pelos detalhes, fez da procura da palavra certa e da imagem perfeita a sua razão de vida.

Hoje, as pausas, as reticências e o silêncio beckettiano são ícones das artes e das letras.Beckett conseguiu transmitir o silêncio da única maneira possível, isto é, através das palavras e da força do texto.

"It was another happy day. »

Beckett impôs-nos o realismo absurdo característica dos tempos modernos por si só já absurdos.

Irlandês de nascimento, francês de crescimento, Samuel Beckett escreveu as suas obras tanto em inglês como em francês, chegando a preferir a escrita na língua de Molière por considerar que, não sendo nativo, seria mais fácil escrever sem estilo.

Todas as peças de Beckett eram caracterizadas por uma aridez dos cenários, uma minúcia dos diálogos e pelo controlo total do trabalho dos actores, como se fossem marionetas nas suas mãos.

As suas obras são o espelho da condição humana e de toda a sua condição absurda. Este absurdo reflecte mais a forma, do que o conteúdo do carácter absurdo, sendo diferente do absurdo de Camus, este mais virado para a absoluta falta de sentido da existência humana.

O absurdo de Beckett existe pelo gozo do irracional e pelas obsessões sem sentido de uma vida infeliz.

A rotina da vida moderna onde nada acontece, parecendo que tudo acontece e se passa é o paradigma de todo o universo beckettiano.

Também em "À espera de Godot" o que acontece é apenas o nada, sendo esta peça conhecida por ser a peça onde nada acontece, por duas vezes, no primeiro e no segundo acto.

"Nothing is funniest than unhappiness »

A percepção para Beckett também era importante e a utilização de outras perspectivas e de outras maneiras de ver a realidade foram uma constante na sua obra. A utilização de incapacidades físicas e mentais evidentes era uma maneira de Beckett recentralizar a atenção e reforçar a multiplicidade de perspectivas pela qual a realidade pode ser encarada. Aqui vemos o quanto a visão proustiana da realidade influenciou Beckett.

Ténues murmúrios

Samuel Beckett foi sempre obcecado pela imagem, a sua e as que pretendia transmitir. Na última fase da sua vida, em plenos anos oitenta, trabalhava arduamente em televisão considerando que era o meio de comunicação do futuro.

" Eles falam, falam, falam e não dizem nada"

O humor absurdo dos Monthy Piton, a escola Britcom e mesmo os lusitanos Gato Fedorento resumem a fórmula de Beckett do riso absurdo, do riso de nós próprios, das nossas incongruências, das nossas cumplicidades com este mundo absurdo, triste e sem sentido aparente.

O humor de " The Office" ainda vai mais além na fórmula beckettiana, através do silêncio forçado em conversas sem sentido e ambiguidades ambivalentes.Delirio absoluto.

Caio e tropeço e todos se riem; tropeçam e caem e farto-me de rir. O nosso espectáculo é sempre o mais hilariante e o de maior audiência.

Em "Play", durante quinze minutos, as vozes vazias de ideias borbulham em diálogos sobrepostos e desvairados num carrossel embriagante. É a condição humana à mercê do destino e de um devir por encontrar. M1,W1 e W2 são os personagens que antes de ficarem, já estavam encurralados.

Personagens ausentes, personagens sem tempo, personagens esvaziadas: este é o mundo de Beckett. O presente faz a sua inscrição no ausente e no não existente numa espécie de criação de "nonsense" precisa e muito estudada.

"Beckett: "It's a beautiful day, isn't it?"
The friend: "Yes, it makes one glad to be alive.
Beckett: "Aw now, I wouldn't go that far.."

A obsessão de Beckett pelo absurdo e pelo gozo provocador revela-se cada vez mais actual e permanentemente. O nosso mundo necessita da visão de Beckett.

Apesar de recorrentemente utilizar temas existencialistas como a solidão, o sofrimento e a condição humana, Beckett não foi um fiel seguidor da filosofia existencialista.

O teatro de escárnio

" La vie n´est qu´une ombre qui passe, un pauvre histrion qui se pavane et s´échauffe une heure sur la scène et puis qu´on n´entend plus….une histoire contée par un idiot, pleine de fureur et de bruit et qui ne veut rien dire."

Shakespeare, Macbeth, acte V, scène 5

Com Adamov e Ionesco, Beckett foi um dos expoentes do novo teatro ou teatro do absurdo.Beckett preferia o termo de teatro de escárnio ao de absurdo, para fazer a distinção e separação em relação aos existencialistas e às conotações camusianas e sartianas.

Beckett, ao contrário de Camus não considerava a vida absurda, apenas difícil, muito difícil. Considerava que os valores morais não são definíveis, nem acessíveis, sem exprimir juízos de valor. Falar de teatro do absurdo é emitir um juízo de valor, o que definitivamente não era o que Beckett pretendia.

Beckett queria a verdade e nada mais.

O teatro do absurdo tem origens bem antigas e arcaicas, no teatro medieval, nos mimos da antiguidade, na commedia dell´arte, nas personagens cómicas de Shakespeare, na literatura de non-sense, no surrealismo, nos filmes de Laurel e Hardy, de Charlie Chaplin, de Buster Keaton e dos irmãos Marx.

A mensagem é assim transmitida metermos de oposições, de rupturas de silêncio e de precisão, de imagem e de movimento controlado.
É assim Beckett. É assim a vida.


Samuel Beckett

Centre George Pompidou

14 Março a 25 Junho 2007
















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