sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Consumo da arte

Recensão Crítica
Impróprio para consumo em “A Anomalia Poética” de Silvina Rodrigues Lopes,
Edições Vendaval, 2005.



Consumo da arte

Toda a criação artistíca é uma tomada de posição, “toda a arte [...] é politicamente eficiente, quer o artista queira quer não”.(1)
“Impróprio para consumo” é um ensaio inserido no livro “A Anomalia Poética”, onde se analisam as problemáticas principais dos campos literário e artistíco.
Na primeira parte do artigo, Silvina Rodrigues Lopes faz uma análise muito interessante do principio gerador da própria “arte”, isto é – o desejo. O desejo de fazer, agir e criar. Com esta premissa somos conduzidos através de linhas de uma prosa intensa, pelos caminhos da análise da arte e do movimento artistíco.
A partir daqui são levantadas pela autora uma série de questões, directamente ligadas com a produção artistíca e com o objectivo da própria “arte”. Terá a “arte” como objectivo o alcance do “ideal de perfeição”? Alcançar o Belo ou o Bem?
Silvina Rodrigues Lopes apresenta-nos uma análise cuidadosa com base nos rituais da própria sociedade, isto é, considera que a “arte” está sempre balizada pelos limites impostos pela Lei, pela moral e pelos do [ bom ou mau] gosto.
A demarcação/não demarcação dos referidos limites impõem à “arte” caracteristícas identidárias/de identidade, nas quais a comunidade e a sociedade em geral se espelham.
A conclusão que podemos tirar é que a “arte” não é uma esfera autónoma transcendental, quer ela seja puramente decorativa, quer seja completamente contestatária; ela é aceite e reconhecida ou atacada e desacreditada. Por muito marginal que a “arte” possa ser há sempre limites a não ultrapassar. As revoluções ou rebeliões são aceites até um determinado ponto. O excesso também tem os seus limites.(2)
A dominação/controle do desejo criativo é assumido pela própria sociedade com vista “à anulação de qualquer movimento de fuga à sua universalidade”.
Consciente desta limitação a autora faz uma descrição minuciosa dos rituais de quebra, das
regulamentações / lei da comunidade, isto é faz uma analise da “festa”.
A “festa” como ritual de “libertação de energias sociais acumuladas”. Esta reflexão, pouco abrangente, leva-nos novamente ao cerne da questão artistíca – o desejo.
Entramos assim, na segunda parte do artigo onde Silvina Rodrigues Lopes analisa a relação de inter-dependência entre a criação artistíca/objecto artistíco e o poder.
A afirmação da “arte” pelo poder ou do poder ela “arte” é sempre uma questão que divide os produtores/consumidores do desejo. Nesta parte é também analisada a “arte” como forma de distinção e hierarquização social. O principio de utilidade/inutilidade da “arte” é assim colocado em permanente discussão. A dialéctica, ou melhor esta contradição foi amplamente explorada pelo “Dadaísmo” .
Este movimento intelectual, literário e estético de vanguarda dos anos 20 do século passado, abriu caminho a novas concepções de(a) “arte”. A autora descreve de uma maneira muito interessante os limites e os caminhos sinuosos da arte moderna/contemporânea.
Estamos assim perante noções tão extremas como as de “anti-arte” e “contra-arte”. Considera que estes movimentos são como que terapêuticos e “orientados para a alteração da relação com a arte fora de um circuito de privilégios demasiados estritos.”
A interpretação dos objectos do quotidiano pela “arte” conduz-nos ao chamado ready made retirando a esses mesmos objectos a função original, dando-lhes ao mesmo tempo uma outra função.
Diz a autora “este não é o nada mas aquilo que se apresenta no apagar das imagens e nos sentidos comuns, presente ou não-presente, porque não unificável – [...]”.
Sobre esta a polémica será interessante referenciar a disputa entre o artista contemporâneo de vanguarda M. Pinoncelli e toda a obra de Marcel Duchamp: mais uma vez M. Pinoncelli destruiu com o seu martelo a famosa “La Fontaine” (O urinol), no quadro da última exposição “Dada” do Centro de Exposições George Pompidou em Paris no dia 4 de Janeiro de 2006.
M. Pinoncelli declarou que devolvia “a sua dignidade ao objecto, vitima de uma alteração da sua utilização e mesmo da sua personalidade”.(3)
A partir da identificação/não identificação da arte e dos objectos produzidos pela própria realidade somos levados através do raciocínio da autora ao conceito da liberdade na sua vertente aristotélica e inevitalvemente à noção de acaso, de determinismo, expontaneidade e o cálculo.
Esta crítica foi, em França, analisada pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss “dirigida contra a concepção elitista da civilização e da arte que reinava sem partilha [...]. O hiatus entre a estrutura e o acontecimento,o sistema sincrónico e a história é total” .
Também para Levi-Strauss toda a forma de “arte” se explica integralmente pela sua função no sistema estrutural secundário da sociedade, todo o acto de discurso se reduz ao jogo de combinação dum sistema primário de signos, todo o sentimento e toda a individualização se decide dentro de um sistema anónimo e sem sujeito”. (4)
Após estas analises complexas, retoma a autora a problemática da subordinação/insoburdinação da arte/objecto de arte em relação às “instituições que impõem a conformação do desejo a um determinado modelo de relações de poder”.
Como dizia Lautréamont “a poesia deve ser feita por todos. Não por um”; estrapolando para a nossa sociedade virtualmente igualitária a poesia deverá ser feita por todos e para todos. Poesia aqui como “arte”.
Para evitar as concessões e escapar ao jogo de especulação e compromissos, o artista lúcido fiel à sua liberdade prefere manter-se à margem, mesmo com o risco da clandestinidade e do anónimato. Ser marginal, é um refúgio, mas um refúgio marginal, onde se reencontra, cruza, saúda, age em conjunto, cria, vive e respira. (5)
Ao examinar todas estas questões, Silvina Rodrigues Lopes leva-nos inevitavelmente para os conceitos estruturalistas: “Compreender a estrutura de um devir, a forma de uma força é perder o sentido, ganhando-o.”
Podemos acrescentar ao raciocínio da autora que essa força está sempre relacionada com a inscrição/não inscrição e de como ela é importante para a própria sociedade.
Mostrar ou não mostrar, ser ou não ser; não é a questão neste caso mas cada coisa é o que é (Shakespeare vs Alberto Caeiro).
Estamos assim no campo da “différance” como movimento produtor das diferenças de conceito, como elemento aglutinador das oposições estruturantes .
Assim, naturalmente, e após estas abordagens, entramos numa quarta parte do artigo em questão, em que a autora deliberadamente nos mergulha nas àguas profundas do enunciado.
Ao referir a crítica formalista parte para uma construção de uma teoria geral da “arte” em que e novamente, analisa a dicotomía da função/objectivo geral da “arte”: Arte Decorativa vs Arte Conceptual.
Trata-se aqui de dessacrelizar, escapar aos imperativos e aos efeitos hipnóticos do prazer da retina, isto é, às ortodóxias e ataraxías artísticas. Estamos assim perante a “arte” a sair do quadro e da galería, isto é, uma “arte” não “museificada”. Restringir a arte ao belo é abrir portas aos supostos canones artísticos eternos e fechar portas a toda uma multitude de expressões do possível.
Sendo “os objectos conceptualmente irrelevantes para a condição de arte” e tendo como base o raciocínio anterior (canone vs vanguarda) somos conduzidos para ao conceito de pós-modernismo, ou seja, para a introdução da arte/objecto de arte no mercado.
A autora elucida-nos claramente sobre o fechar de ciclo que o pós-modernismo nos conduziu e de comoo mercado como “identidade supra” assumiu a própria “arte”.
A “arte” como mercadoria especializada; estamos agora no presente em que o objecto do desejo passa a ser a “arte” como espelho da própria sociedade; é o eclético por excelência. Assume assim a autora uma posição crítica em relação ao consumo da arte enquanto bem transaccionável. Apesar disso nunca deixa de sublinhar o valor do marketing enquanto motor impulsionador da troca artística.
Evoca a autora na parte final do artigo os modelos e conceitos economicistas ligados à “arte” numa perspectiva puramente académica mas interessante.
Consideramos a conclusão como que um turbilhão de conceitos, todos eles individualmente válidos mas que em conjunto nos permitem alguma confusão.
Teorias de delimitação da “arte” em campos e processsos institucionais conferem à “arte” uma legitimação que pensamos ela não precisaría.
São homens e mulheres como nós que ao infrigirem estéticamente os conceitos pré-concebidos nos empurram radicalmente para a frente num movimento circular anti-glaciar e gerador da própria vida e existência enquanto entidades máximas e absolutas.

A arte está em nós.

Referências Bibliográficas:

1 Gérard Fromangor, Citado por Yves Helias e Alain Jouffroy, “Portrait idéologique de l’artiste fin de siécle”, in “Le Monde Diplomatique” Janeiro de 1990, páginas 22-23.
2 Fréderic Baillet e Philippe Liotard “De l’autonomie de la production artistique”, in Quasimodo nº5, Printemps 1998.
3 M. Pinoncelli e Duchamp: “Frappante charité”, in Le Monde edição on line, 06 de Janeiro de 2006.
4 H. R. Jauss “Por une esthétique de l reception”, Gallinard 1972, páginas 119-121.
5 Jean-Jackes Lebel e Arnaud Lanelle-Rojoux,in “Poésie direct”, Paris, Opus, International Edition, de 1994, pág. 65.

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