domingo, 11 de fevereiro de 2007

Arthur Rimbaud - O futuro como objecto poético

Recensão Crítica

“The Time of the Assassins – a study of Rimbaud by Henry Miller”
1962, New Directions Books, New York


“O meu destino depende deste livro”, terá dito Arthur Rimbaud enquanto escrevia o seu “nigger book” (Une Saison en Enfer).Esta afirmação, tão levianamente profunda, moldou o próprio destino e a própria essência da linguagem poética.

“What Rimbaud did for language, and not merely for poetry, is only beginning to be understood. And it’s more by readers than writers”

O poeta como oráculo de uma determinada sociedade em uma determinada época sempre foi uma imagem recorrente da literatura e mesmo da civilização humana. As palavras de Rimbaud tornaram-se assim e sem mesmo ele se dar conta, num presságio societário incorporado numa tragicidade individual, resultado do expoente civilizacional a que chegámos.
Teremos nós, e desde a partida, o nosso destino traçado ou somos mestres dele próprio?
Édipo ao sair de Corinto, ao ouvir as revelações do oráculo, não fez mais que tentar fugir do destino que. o esperava em Tebas. Não será que, a partir de determinado momento todos nós nos apercebemos do nosso destino?
Penso e sinto que sim.
A renúncia ao nosso mundo civilizado pela antevisão de um destino trágico é algo de problemático, pois teremos sempre a tendência para a redefinição desse mesmo destino e para a reconstrução do mundo e da sociedade.
Rimbaud renunciou a um mundo em apogeu civilizacional; considerava-se no nadir desse mundo.

“The future always has and always will belong to – the poet.”

A abordagem que Henry Miller faz do trabalho de Rimbaud é acima de tudo um trabalho de compilação de exemplos de vida entre os dois autores e de como as suas visões do mundo são (ou eram) idênticas.
Numa linguagem directa e sem rodeios lexicais, Henry Miller apresenta-nos Rimbaud em toda a sua plenitude, através do seu percurso de vida e poético. Esta obra é antes de mais uma apresentação formal de Rimbaud ao público norte-americano.
Rimbaud foi e será sempre o futuro apesar de passado. Ainda hoje tentamos subir uma torre de Babel à procura da essência da sua “ proto-linguagem”, a essência de uma mensagem liberta de espartilhos de significantes linguísticos e de significados civilizacionais.

“The future is all his, even though there be no future”

Na primeira parte do livro, Henry Miller transporta-nos pelos caminhos da sua descoberta pessoal da obra e do génio de Rimbaud; fica espantado com a semelhança e emaranhado de coincidências (também diferenças) entre as suas vidas pessoais e literárias.
Ambos são assumidamente elementos fora-de-tempo, perturbadores e ao mesmo tempo construtores de um futuro que ainda não se vislumbra.
“Voyants ou voyous?”, esta sempre foi a questão que se coloca ao analisarmos algo que nos perturba e/ou choca. Será porque não estamos preparados e não entendemos ou porque enquanto leitores e receptores, não somos ainda o modelo capaz de receber. Estamos então numa análise diacrónica que, no caso particular de Rimbaud nos empurra para a intemporalidade. Os terrenos que sondamos são os que só a poesia pode percorrer.
Nesta sociedade materialmente científica, ignoramos cada vez mais a voz do futuro, o verdadeiro oráculo, a voz do poeta e da beleza.Em vez disso damos mais atenção à voz do cientista e do horrível. Será então a poesia apenas uma anomalia?
Que fazer perante esta aberração?
Acreditar e acreditar sempre.
A grande crise existencial de Rimbaud foi quando tinha dezoito anos e a partir daí nada mais escreveu, isolando-se da civilização e do mundo num deserto inóspito até morrer aos 37 anos.
Henry Miller teve a sua crise existencial aos 37 anos onde envereda pela produção literária. Os paralelos que Henry Miller faz são imensos, entre a sua vida e os seus sentimentos e os de Rimbaud.
Esta primeira parte da obra contribui muito para valorizar o percurso de vida de Rimbaud e a torná-lo emblemático e arquétipo do rebelde e revoltado, tão utilizado pelos movimentos de jovens pós anos cinquenta.
Henry Miller sublinha também o calvário da sua viagem de regresso da Etiópia, já muito doente e com o seu destino verdadeiramente traçado.
Outro conceito referido pelo autor é a anti literalidade latente, quer em Rimbaud quer nele próprio. Após anos de estudo e de leituras que os absorveram e prepararam, foram capazes de dizer não aos cânones e enfrentar os dogmas de uma sociedade hipócrita.
Consideramos assim que o demónio tomou conta da literatura e da poesia? Criámos monstros ou somos nós o verdadeiro Monstro.
Rimbaud caminhou sozinho por toda a Europa, esfomeado, durante dois anos numa experiência única que muito contribuiu para a sua visão do mundo e da particularidade e singularidade das coisas simples.
Henry Miller também caminhou sozinho entre Manhattan e Brooklyn, esfomeado, numa experiência também única e que contribuiu definitivamente para o marcar no seu percurso literário.
O regresso à loucura é bem mais assertivo do que o regresso dos loucos. Os loucos conduzem-nos neste caminho sem retorno de uma economicidade imposta numa desordem monstruosa que cria monstros a cada minuto numa desregulação epígonal.
Eu vos saúdo, Miller e Rimbaud. Em tempo identificaram o demónio e escolheram o Céu.
Viver tudo de todas as maneiras foi o que fizeram estes dois sábios da existência.
Vivemos numa era em que definitivamente temos de aceitar o Demónio como símbolo da pequenez existencial dos teledependentes, escravos absolutos de uma máquina castradora.

The world does not want originality; it wants conformity, slaves, and more slaves.”

Sou ou somos renegados nesta recusa intelectual de um destino...trágico? Estamos, como disse Miller, renunciar a toda uma civilização e tentar construir uma nova alternativa ou destruímo-la com as nossas próprias mãos?
Considero que a destruição se aproxima, num acto de reequilíbrio necessário, num refluxo de energia. É a própria Física que nos explica que situações de desequilíbrio não resistem muito tempo.
Vem aí “ Une Saison en Enfer” da nossa civilização, que faz muito tempo renunciou à esperança do Bem e do Belo, às virtudes do amor e da sua palavra, à Poesia.
Miller estabelece raciocínios de comparação entre a traição da sociedade perante o poeta e o acto de renúncia do próprio Rimbaud aos dezoito anos. Esta comparação é extremada e datada ao lançamento da Bomba Atómica, facto que ao tempo (1955) era de per si símbolo da chegada de tempos de destruição. E não será que tem razão? Não viveremos todos na ressaca de um progresso científico que nos renega como seres pensantes e modificadores da realidade?
Acredito que a verdadeira Estação no Inferno já chegou e que, como diz Miller o mundo se tornou imune ao discurso poético e vai ignorando a própria existência do Poeta.
Ele próprio, o Poeta, perdeu a fé em si e na sua missão.

“If the mission of poetry is to awaken, we ought to have been awakened long ago. Some have been awakened, there is no denying that. But now all men have to be awakened- and immediately-or we perish. But man will never perish, depend on
that. It is a culture, a civilization, a way of life which will perish. When these dead awaken, as they will, poetry will be the very stuff of life. We can afford to lose the poet if we are to preserve poetry itself.”

O elemento que falta em Rimbaud é definitivamente a falta de fé – em Deus, no Homem e na Arte.
Somos assim renegados numa civilização já renegada à muito. O regresso ao Bem e ao Belo é sempre possível. No fim, e como em tudo, o que resta somos nós, o Ser Humano.
Esta é a verdadeira consciência do poeta e do artista em geral e a verdadeira essência da modernidade.Rimbaud iniciou a modernidade ao abrir novas portas de compreensão de uma realidade cada vez mais complexa e distante do indivíduo.
“éternité,infini,charité,solitude,angoisse,lumiére,aube,soleil,amour,beauté,inoui,pitié, démon, ange, ivresse, paradis, enfer »
Estas palavras foram de uma maneira obsessiva utilizadas por Rimbaud.
Henry Miller pega então no conceito de liberdade e associa-o à diferenciação individual numa civilização que tende a fazer de todos e cada um igual. Liberdade de preservação da individualidade, este é o verdadeiro caminho para a Salvação referida tantas vezes por Rimbaud.
A ilusão do ser e do conhecimento fizeram de Rimbaud a essência do poeta, sendo hoje comummente aceite como o poeta mais lido e mais actual de todos os tempos. Terrível ilusão esta que nos envolve como um barco bêbado que transporta a mensagem para o grande oceano do conhecimento.
Rimbaud é isolada por Miller do movimento simbolista e mesmo dos surrealistas que tanto o citaram. Os símbolos de Rimbaud eram os do espírito, gravados em sangue e angústia. A sua linguagem era a do espírito. A modernidade tinha começado nesse momento.

“ Il faut être absolument moderne ! »

Curiosa é também a comparação que Miller faz de Rimbaud com Van Gogh em termos de coragem, energia e perseverança. “ As suas vidas estão entre as mais tristes de que há registo nos tempos modernos.

“The song of creation springs from the ruins of earthly endeavor.The outer man dies away in order to reveal the golden bird which is winging its way toward divinity”

No inicio da segunda parte desta obra, Henry Miller, enfatiza o carácter rebelde de Rimbaud,

“ni Maître ni Dieu”
E o facto de em plena efervescência da vida e em pleno culminar da criação ele ter desistido. A resposta às questões que o seu percurso de vida nos coloca pode estar na frase enigmática “ Je est un autre”
Que outro ele é que não ele mesmo? Que outro ele não é?
O corte com o mundo é feito de forma espartana e com o recurso a uma disciplina que já vinha de trás. Que Rimbaud é então este, senão o mesmo que não outro que provavelmente nunca existiu.
Outras vidas que existiram ou existem, outras “ Saison en Enfer” e outras “Illuminations”. O Inferno e o Paraíso são aqui e tudo depende de como encaramos e pensamos a realidade.

“If you believe you are in Hell, you are. And life, for the modern man, has become an eternal Hell for the simple reason that he has lost all hope in attaining Paradise”

Entramos, nós e Miller, na(s) grandiosas(s) “Lettres du voyant” . A segunda, dirigida a Paul Demeny é a Poesia em estado puro, um manual para gerações futuras, o objecto de arte por excelência.
A linguagem é a ideia pensada e sentida. A chave dessa linguagem é o símbolo que o poeta enquanto criador, supremo, artístico, possui.
Criação artística e experiência são em Rimbaud simultâneas, num acto contínuo que o coloca num patamar superior.
Questiona-se Miller porque adora ele Rimbaud acima de todo e qualquer poeta. Em Rimbaud, Miller vê-se como se fosse ao espelho (não nos veremos também?). Não reconhecemos na linguagem de Rimbaud o nosso próprio destino, o devir da própria Humanidade?
Rimbaud ganhou espaço no Paraíso, porque o mereceu, porque o construiu.

O verdadeiro dilema do poeta/artista é assim analisado a um pormenor que nos conduz ao nosso verdadeiro dilema enquanto seres pensantes.

“ Ce n´est pas un rêve d´un hachischin, c´est le rêve d´un voyant »


Referências em língua inglesa, de Henry Miller
Referências em língua francesa, de Arthur Rimbaud

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