quinta-feira, 3 de julho de 2008

Paris nunca se acaba -A cidade de Paris e os diálogos artístico-culturais

“Les idées sont comme des êtres vivants. Elles naissent, elles croissent, elles prolifèrent, elles sont confrontés à des autres idées et elles finissent par mourir.
Et si les idées, comme les animaux, avaient leur propre évolution ? Et si les idées se sélectionnaient entre elles pour éliminer les plus faibles et reproduire les plus fortes comme dans le darwinisme ?
Dans Le Hasard et la Nécessité, en 1970, Jacques Monod émet l´hypothèse que les idées pourraient avoir une autonomie propre et, comme les êtres organiques, être capables de se reproduire et de se multiplier.
En 1976, dans Le Gène égoïste, Richard Dawkins évoque le concept d´idéosphère. Cette idéosphère serait au monde des idées ce que la biosphère est au monde des animaux.
Dawkins écrit : Lorsque que vous plantez une idée dans mon esprit, vous parasitez littéralement mon cerveau, le transformant en véhicule pour la propagation de cette idée. Et il cite à l´appui le concept de Dieu, une idée qui est née un beau jour et n´a plus cessé ensuite d´évoluer et de se propager, relayée et amplifiée par la parole, l´écriture, puis la musique, puis l´art, les prêtes la reproduisant et l´interprétant de façon à l´adapter à l´espace et au temps dans lesquels ils vivent. (…).
Du combat des idées dans l´idéosphère surgit notre civilisation. ” 1


“ Paris nunca se acaba”

A cidade de Paris e os diálogos artístico-culturais



A base deste trabalho final de Seminário é a cidade de Paris e de como ela se tornou eixo aglutinador de uma intelingentsia cultural e artística durante os últimos dois séculos. Verdadeira placa giratória de ideias, de escritores, de artistas, de intelectuais, Paris afirma-se durante o século XX como verdadeiro bouyllon de culture onde as ideias surgem e fervilham numa espiral de contaminação.
Irei concentrar-me essencialmente no século XX em alguma revisões sumárias de relações e movimentos, de lugares e de escritores, num cruzamento de conexões e referencias que habilmente nos conduzem pelo grande século dos intelectuais e dos artistas.
A viagem que proponho ultrapassa muito a expressão simples de dissertações pessoais e transporta-nos numa busca incessante pela essência da obra de arte e da verdade artística.
Paris é filha do Sena e do rei e segundo Paul Valéry, a cidade mais completa que possa existir no mundo.
Paris torna-se assim num eixo onde todas as energias criativas se fundem e onde está sempre presente uma espécie de “ideiosfera” propicia à produção artística.
Não será assim Paris a verdadeira obra de arte?

Boa Viagem!



Cidade de intelectuais \ Cidade de escritores
A minha cidade
As inscrições



“Ce pays est celui des écrivains, des penseurs, des poètes.”
Balzac


A centralização da vida cultural em Paris é uma característica francesa que contrasta com a tradição anglo saxónica de descentralização cultural e artística. Este facto tem implicações importantes e graves ainda nos nossos dias e poderá explicar parcialmente o fracasso cultural francês do ultimo quartel do século XX.
Mesmo assim, a importância de Paris ainda hoje se sente directamente na literatura e outras artes francófonas e indirectamente na literatura global, já que a produção artística e literária é tão só a soma de todos os livros já produzidos e lidos. Gilbert Durand na sua Teoria do Imaginário descreve que tudo o que se escreveu, escreve ou virá a ser escrito é condicionado por um numero reduzido de arquétipos e que o universo das ideias é limitado, constante e paralelo.

O primeiro livro que li sobre Paris foi “ Paris é uma festa” de Hemingway e foi através dele que me apercebi das minhas memórias escondidas de uma cidade que tinha acolhido o sonho da minha família mas que os condicionalismos revolucionários de 68 acabaram por desfazer. Habitávamos um humilde apartamento na Porte de Pantin e nessa altura os meus jogos eram mais infantis e triviais mas que incorporavam rotinas ainda hoje existentes como o passeio dominical ao Jardin du Luxembourg para bem manejar os barcos à vela no pequeno lago central.
O regresso ao Jardin foi bem através da pena de André Gide. “Quem teve a sorte de lá viver quando era jovem, depois Paris acompanha-o, vá para onde for, para o resto da vida.” 5
A imagem que Hemingway tão bem passou das suas experiencias parisienses são a prova escrita dos processos e dos lugares emblemáticos que ao serem descritos assumiram força de ícones e sendo assim, se transformaram eles próprios em processos de assumpção e de registo iniciático.

Estamos perante um lugar de inscrição positiva, dentro da concepção desconstrutivista de Jacques Derrida. Os registos e as impressões tocam desde sempre a literatura, no que ela tem de não canónico e não filosófico. A imaginação é assim. Mais do que um recurso de forma, uma ameaça para a verdade e para as ideias. Pablo Picasso lembrou-nos que a imaginação é memória e que sendo assim (e é assim!), o lugar de inscrição é o da ficção.
Assim, a ficção é um limbo de mediação, sendo aquilo que é e não é, ou que pode ser sem o ser; estamos perante os condicionalismos da dialéctica hegeliana e cuja não linearidade (ou será não-circularidade) resiste à participação e ao sistema enquanto identidade heterogénea que não se fecha.
A desconstrução só é então possível pela impossibilidade do sistema em se resolver e mesmo em existir.
Estamos sempre no “para além do lugar”, “ailleurs”, aliás também, numa singularidade cultivada que interrompe o registo da possibilidade.
É a inscrição que não se dilui e que através da metáfora, a escrita surge no lugar da ferida. É a dimensão catastrófica do pensamento de Jacques Derrida. 8


Paris
Motivo, eixo e catalisador

“O passado, dizia Proust, não só não é fugaz, como não sai do sitio. Com Paris passa-se o mesmo, nunca partiu em viagem. E ainda por cima é interminável, nunca se acaba.” 3
Como a literatura, Paris é também o diálogo entre o presente e o passado e uma ponte para o futuro.
Paris, como é óbvio, também é sujeito e motivo. Ao longo dos séculos foi pintada em frescos sociais impressionantes e foi quadro privilegiado de telas realistas e impressionistas. Cada pedra de Paris é também História Universal e basilar na construção da sociedade como a concebemos hoje.

A escrita de Paris e sobre Paris é antes demais uma maneira de inscrever o espírito e o pensamento: “ Lorsque j´écris ma pensée elle ne m´échape pas” , sublinhava Lautreamont nos Les Chants de Maldoror verdadeira obra prima inspiradora dos surrealistas; a Paris de Isidore Ducasse é obscura e inquietante bem à maneira do Spleen de Baudelaire e onírica e questionável à maneira de André Breton.
As colinas de Paris por serem únicas foram e são referencia farol na falsa planície de Lutécia. Se a butte Montmartre através do seu pitoresco atraiu uma panóplia de pintores como Géricault, Corot, Renoir, Van Gogh e Toulouse-Lautrec o parque Buttes-Chaumont cativou Aragon e Breton na sua procura da essência do quotidiano.
É evidente que lugares tão povoados de história e da História da Arte e da Literatura motivam opções, exponenciam dotes, elegem verdades e catalisam vínculos.
Ser artista é ser Paris e ser escritor é ser de Paris pelo menos uma vez na vida. Paris é ritual e instrumento, acessório e paisagem, placa e gare, Paris é Paris.

Regresso continuamente a Paris, nas minhas leituras, no meu estudo e nas minhas constantes viagens. Procuro talvez algo que não sou e talvez nem queira ser numa viagem errante pela arte e pela literatura, pelo meu passado e pelas minhas referencias.
Durante muitos anos a Gare de Austerlitz foi a ligação e o Sud- Express o transporte. Foi o recomeço de um amor efémero. A cartilha ainda não existia, o saber e a experiencia apenas iniciavam o seu acumular mas Paris revelava-se da mesma maneira que se tinha revelado aos já revelados e às referencias.
Nos começos de oitenta os Pirenéus eram ainda fronteira e em Paris sentia-se um outro mundo. Renzo Piano fazia nascer o Beaubourg e tentava-se o renascimento artístico de uma cidade que já tinha sido referencia para todas as outras.


Paris
Iniciação e exílio

A iniciação ritual está presente em todos os processos societários humanos desde a antiguidade até ao presente. Todas as sociedades praticam rituais. O ritual pode ser definido como o conjunto de sequencias simbólicas standards ou não standards, publicas ou privadas. Estamos no limite do sagrado e do profano e todo o ritual tem a ver com o cruzamento de fronteiras e da ultrapassagem de etapas.
Todos os processos rituais e iniciáticos são simbólicos e por vezes metafóricos.
Apesar da não assumpção pelas sociedades modernas dos rituais e sobretudo dos rituais iniciáticos, eles estão presentes nos mais pequenos pormenores da nossa vida. 2

Ser escritor é questionar o devir e testemunhar a humanidade; é ser eco e filtro do processo humano de relacionamento societário. Ser escritor é ter de conhecer e viver em Paris pelo menos uma vez na vida e pelo menos uma vez na vida ser de Paris.
As ideias e os processos multiplicam-se e contagiam em cada esquina e em cada café. Os processos verbais brotam de cada prédio e de cada pavé .
Escrever em Paris é sentir o ser humano universal na sua plenitude; em Paris um mundo inteiro converge numa multiplicidade de processos transmigratórios internos e externos. O mundo está em Paris e como tal, talvez se diga que Paris é o mundo.

Como Enrique Villa-Matas muitos outros escritores percorreram esse caminho iniciático de ir viver para Paris. 3
Esta procura de si mesmo proporcionou a confluência de centenas de escritores, artistas e intelectuais de todo mundo numa mesma cidade em diversas plataformas temporais e físicas mas criando laços eternos comunicantes na “ideiosfera”.
A multiplicação deste fenómeno iniciático permitiu à cidade adquirir estatuto de ícone e criar a própria necessidade de “ter de” “ para ser”.

A antologia literária de Paris é em si a antologia literária universal pelos motivos anteriormente explicados. A confluência de culturas, épocas, estilos e orientações permitem que a própria cidade seja referencial orientador.

Chegar a Paris para se viver e escrever pode-se rapidamente tornar num verdadeiro pesadelo mas é esse mesmo pesadelo, corolário de dificuldades bem reais que poderá servir de mote e motivação para a produção artística.
Cheguei muitas vezes a Paris mas cada vez que chego regresso a uma casa que ao ser também minha é de todos.

Foi no século XX que Paris verdadeiramente se afirmou como pólo centralizador de uma cultura europeia e universal. É no século XX que Paris serve de veículo de transmissão de cultura e de ideias, de arte e intelectuais.


Muitas personagens foram forçadas ao exílio, simplesmente por terem outras ideias e acabaram por descobrir em França o verdadeiro significado da palavra solidariedade.
A terra de asilo que Paris sempre representou para muitos povos permitiu a continuação da construção da sua herança cultural. Deu-lhes a possibilidade de acreditarem no valor essencial dos direitos humanos. Em Paris, capital cultural do mundo, dezenas de culturas encontram-se através do prisma da solidariedade que ali sempre foi prezada.
Cria-se assim uma literatura de exílio e constroem-se pontes entre diversas experiencias permitindo e renovando esperanças num futuro melhor.

O exílio pode ser politico, cultural ou económico. O exílio cultural existe e sempre existiu e parte por vezes de decisões individuais, de isolamento e de crescimento: intelectuais e artistas anglo-saxões que rumaram para Paris na primeira metade do século XX. O exílio politico foi mais marcante nas décadas de 60 e 70 e foi referencia para a própria luta interna dos povos pois era em Paris que se aglutinavam os intelectuais desses países: a América Latina, a Península Ibérica e a Europa de Leste são exemplos marcantes. O exílio económico teve várias vagas ao longo das décadas de 60 e 70 e voltou a assumir importância com as vagas de imigrantes do Magreb e da África francófona.
Todo este movimento de transmigração física permitiu uma transmigração cultural e o aparecimento de novas literaturas chamadas de fronteira ou de charneira. A negritude trouxe o negro para dentro do campo literário francês. A africanidade e a francofonia são hoje os únicos objectivos da nova geração de escritores em busca do reconhecimento universal. Os anglófonos e lusófonos nunca cederam à tentação de “florear” África como fizeram os intelectuais da negritude e caracterizam-se por uma constante questionamento da essência da sua origem e por uma assumpção das suas raízes numa urgência bem característica destes tipos de estudos pós-coloniais.

“A poesia da negritude era uma revolução do olhar. Essa subversão dizia respeito primeiramente aos africanos a quem séculos de escravidão e colonização ensinaram a olhar seu continente e suas culturas com os olhos de desprezo do Ocidente triunfante.
Surgida na Paris dos anos 1930 e 1940, sob a pluma do trio carismático formado pelo senegalês Senghor, o martinicano Aimé Césaire e o guianense Léon-Gontran Damas, a nova poesia negra cantava sem complexo a beleza da “mulher nua, mulher negra”, exaltava a energia e o fausto dos impérios africanos esquecidos, desalienando o olhar que o negro tinha sobre si mesmo e sobre seu passado.” 4

Paris
Perímetros, lugares e caminhos
Montmartre e Montparnasse


Paris foi uma festa, que começou bem antes dos loucos anos vinte. A festa era da burguesia, dos artistas e da vida boémia. A Belle Époque despertava sentimentos embriagantes. Picasso, Apollinaire e Braque rendiam-se ao Cubismo e Paris era expoente e modelo da modernidade.
Montmartre e os grandes boulevards eram os centros da actividade artística e intelectual.
A guerra de 14-18 interrompeu as festividades e o movimento Dada mudou-se para o Cabaret Voltaire em Zurique, na eterna neutral Suíça.

Os canhões da guerra calaram-se e a festa continuou….os anos loucos 20 tinham inicio. Ernest Hemingway descreve bem esse estádio parisiense em “ Paris é uma festa”.
“Lembro-me dessa época como de um perpétuo 14 de Julho” afirmou Maurice Sachs.
Era o Tout Paris em festa; excentricidades, divertimento e criação como novo fôlego após quatro longos anos de uma guerra sanguinária.

“(…) O movimento Dada e o Surrealismo fizeram explodir a vida literária com textos de André Gide, Philippe Soupault, Aragon (…) No Boeuf sur le toit, na rue Boissy d´Anglas, junta da Madeleine, estavam, lado a lado, Jean Cocteau, Erick Satie, Raymond Radiguet, André Breton, Max Jacob…” 7

O centro artístico nesta altura mudou-se para Montparnasse. O chic do momento era o Jockey, o Dôme e a Coupole. Principalmente estes três iniciaram uma tradição de encontros entre poetas, pintores e músicos de jazz. O mundo fluía entre o boulevard Montparnasse e o carrefour Vavin. Novamente com Picasso e agora com Vlaminck e Modigliani.


“Nesse tempo muitas pessoas frequentavam os cafés no carrefour Montparnasse-Raspail com o intuito de aí serem vistos e, em certo sentido, esses locais desempenhavam a função que hoje em dia foi entregue às comadres dos jornais que têm a seu cargo distribuir sucedâneos diários da imortalidade.” 5


“ (…) o Dingo Bar onde, em Abril de 1925, Scott Fitzgerald e Hemingway se conheceram. A rue Delambre é uma rua pequena, repleta de bares e hotéis, fica atrás do mítico Café Le Dôme “3

Stefan Zweig testemunhou esses anos de profícua produção artística e de intensa energia interior que permitiu à cidade propagar o vírus da criação artística e literária. Estas vibrações permitiram uma imensa troca de experiencias, saberes e ideias que fervilhavam pela cidade e pelos lugares.


“(…) Déjà avant 1914, ces cafés étaient fréquentés par des peintres et des revolucionaires comme Lénine, évoqués par André Warnod dans ses “ Montparnos” et si on remonte plus loin dans le temps, il faut mentionner la rue de la Gaîté, de la joie comme disaient les gens du quartier (…)”8

A criação contagiava e as ideias surgiam fulminantes. Charles-Edouard Jeanneret, Le Courboisier, imaginou uma periferia de Paris cheia de modernos arranha-céus; foi a génese da actual La Defense.

As Arts Déco instalavam-se e os anos 30 viram a continuação do turbilhão criativo e festivo. O Jazz mudava-se para Paris com a vinda de Duke Ellington e Louis Armstrong. Os realizadores René Clair e Mardel Carne iniciavam a sua carreira.

Mas o ciclo de criação e partilha seria terminado com o som das bombas e com a invasão germânica. Pétain virou as costas aos franceses e criou o fantoche de Vichy. De Gaulle foi resistente em Londres e Von Choltiz assumia o comando da cidade luz.

Durante quatro anos a vida foi feita de resistência e expedientes de sobrevivência. Os cupões e senhas de racionamento regressaram em força e as filas de espera simbolizavam a enorme paciência dos habitantes. O mercado negro florescia e os militares alemães gozavam e beneficiavam do privilégio de ocupar uma cidade como Paris, beneficiaram dos prazeres de Paris.
A revolta de Paris foi feita semanas antes da divisão Lecrec libertar oficialmente a capital. A 26 de Agosto de 1945 De Gaulle chegou ao Arco do Triunfo. Paris estava em júbilo.

Mas a recuperação de Paris e do espírito parisiense iria ainda demorar e foi só no inicio doa anos 50 que Paris recuperou a sua energia criadora.

O Paris do pós-guerra foi feito de júbilo, sofrimento e…..irreverência. A juventude e o existencialismo apossaram-se dos locais de Saint.-Germain-des-Prés: o café de Flore, les Deux-Magots, a brasserie Lipp, a Rhumerie, as caves e o famoso Tabou.

Foi como se o centro da criação e produção tivesse apanhado a rue de Rennes e saído de Montparnasse em direcção a Saint-Germain.O assalto ao bairro tinha sido consumado de uma forma pensada e consistente. O trompete de Boris Vian e o be bop do clube Rose-Rouge animavam as noites. Juliette Gréco e os frères Jacques dominavam os palcos improvisados das caves.
A imprensa via nos existencialistas uma excentricidade da Libertação. Foi criada a revista Temps modernes que juntou Sartre e Simone de Beauvoir. Em 46, Sartre faz a sua famosa conferencia na Sorbonne sobre a responsabilidade de ser escritor. O teatro do absurdo dava tímidos passos com Beckett e Ionesco.

Os existencialistas eram objecto de troça por parte da imprensa e os escândalos sucediam-se pelo facto da irreverência das suas atitudes chocar com a moral conservadora dominante na sociedade francesa da altura.

Saint-Germain-des-Prés
Um caso particular e único


O quartier Saint-Germain era o centro e placa rotativa de um conjunto de intelectuais individualistas sem individualidade, excêntricos de todos os quadrantes, snobs, resistentes do surrealismo, teóricos do nascente existencialismo, intelectuais e afins que se reuniam em cafés e bistrots fumarentos para falarem e discutirem na honesta tentativa de mudarem o mundo.

Em 1950, Boris Vian, o príncipe de Saint-Germain, produziu um texto histórico para a colecção dos Guides Verts e que se tornou um marco antropológico, topográfico, sociológico, etnográfico e económico, uma verdadeira míni enciclopédia de Saint-Germain-des-Prés do pós-guerra.
Durante este anos de ouro, Saint-Germain viu florir novas correntes de literatura, teatro, canção, cinema, artes plásticas, dança, filosofia, fotografia e música contemporânea.
Este verdadeiro turbilhão cultural foi único na história da Humanidade e ainda hoje se podem verificar os resultados e as influências dessa verdadeira revolução cultural que iria culminar no Maio 68. Um pouco como na época das luzes no século XVIII que acabou por ser a génese da Revolução de 1789.


Todos os que queriam partilhar de uma vontade e mudança e construção de um mundo novo encontravam-se lá: Sartre e Beauvoir no Flore e no Deux Magots, Man Ray e Antonin Artaut no Rhumerie, Camus e Tzara no Tabou .
Além dos famosos e das celebridades, foi toda uma juventude, estudantes europeus e americanos que vieram Saint-Germain celebrar a liberdade e sobretudo ajudar a construí-la.

“ Saint-Germain-des-Prés est une île; à cette nature insulaire, elle doit l´humidité de son climat, l´abondance de ses débits de boisson et le développement de ses rivages qui, s´ils ont parfois reçu des noms sans rapport évident avec leur configuration, permettent néanmoins aux habitués de s´y reconnaître.
Les autochtones, qui ne sont pas d´accord avec l´administration, limitent généralement son aire au contour suivant, que l´on peut circonscrire en traçant, sur un plan ordinaire de Paris, les repères ainsi définis.
1. Au nord: quais Malaquais et de Conti
2. Au sud: rues Vieux Colombier et Saint Sulpice
3. À l´est: rue des saints-pères
4. À l´ouest: rue Dauphine et de l´Ancienne Comédie.
À l´île principal, s´ajoutent des terre isolées qui profitent de l´appellation contrôlée et jouissent ( non sans raison) du privilège de l´exterritorialité: ce sont l´île Saint Yves
( point de croisement du Tropique de l´Université et du Méridien nº 49), l´île de la Rose Rouge et l´archipel des Grands Augustins.
Il est a noter que les bras de mers et canaux qui entourent ou traversent l´île ne sont pas colores en bleu sur les cartes, afin de donner le change et de ne pas troubler les chauffeurs de taxi; de la sorte, ceux-ci les franchisent sans s´en apercevoir. Il n´en reste pas moins qu´un Germanopratin ( ou habitant de Saint-Germain-des-Prés) ne peut franchir les limites de son territoire sans se munir d´un équipement spécial (cravate pour les hommes, jupe pour les femmes) et de tout son courage. D´ailleurs, sitôt traversés les bras de mer en question, le Germanopratin perd pied; ceci incite à penser que l´eau se poursuit au-delà de ses chenaux et ne revêt une apparence solide qu´afin de mieux tromper son monde. On sait que rien n´est perfide comme l´eau. Nos indigènes, pénétré de cet axiome, se gardent bien de la consommer pure.” 6


O Flore
O berço da legenda


“(…) o Café de Flore, onde travei uma fugaz conversa com Roland Barthes, que me contou que, depois de trinta anos como cliente do bar, a empregada da caixa tinha-o visto na televisão e ficou a saber que era escritor (…)” 3

É o mais antigo dos cafés de Saint-Germain. Aberto no segundo Império teve altos e baixos e entrou em declínio depois da guerra de 1914 mas sempre mantendo o estatuto de café literário e politico de esquerda.
Mas foi só a partir de 1930 que se transforma no motor do desenvolvimento cultural de Saint-Germain, um pouco à sombra dos Editores que se estabeleceram em massa na Rive Gauche e também da presença da Câmara de Deputados nas proximidades.
O núcleo de habitués incluía Robert Desnos, Antonin Artaut, Serge Regiani e Jacques Prévert entre muitos outros. Sartre e Beauvoir aí se estabeleceram em 1939 antes de se passarem para o Deux Magots.
Simonde de Beauvoir contava: sobretudo no Inverno esforço-me por chegar bem cedo para ocupar o melhor lugar bem junto do aquecimento.
Verdadeiro café refúgio, transformou-se em escola de estudo, onde se podia escrever melhor e mais tempo sem os dedos enregelarem, frisava Simone.
O escritor Boubal que em 1939 comprou o Flore contava : cerca de 1942 frequentava o café um senhor que vinha da abertura até ao meio-dia e depois do almoço até ao fecho. Vinha por vezes com uma senhora e sentavam-se em mesas separadas mas no mesmo canto. Comunicavam por bilhetes enviados pelo garçon. Só quando chamaram um dia ao telefone Mr. Sartre é que o identifiquei.
Sartre dizia que a atmosfera do Flore era como a de clube inglês e que lhe permitia produzir bastante. Não só ele mas também Jacques Prévert e Albert Camus são admitidos neste circulo restrito.
O resultado desta partilha e intercâmbio é nosso conhecido e regista-se como uma das épocas mais profícuas e importantes da produção literária e artística da Humanidade.
No Flore foram escritos L´invitée por Simone de Beauvoir, L´Être et le Néant, as peças Les Mouches e Huis-Clos por Sartre.

Os tempos também são de festa e de teatro. Picasso junta-se ao clã e Boris Vian tornava-se em bandeira estereotipada de um movimento, de uma época e de um lugar.
O sucesso das pessoas foi também o sucesso de um lugar, Saint-Germain-des-Prés, tornou-se legenda dentro da própria legenda que eram as pessoas.


Deux Magots
O Café da grande esplanada

O Deux Magots abriu em 1885 e deve o seu nome a dois chineses de porcelana herdados do antigo armazém de frivolidades que existia naquele lugar.
Situado no Boulevard Saint- Germain no carrefour com a Rue de Rennes simboliza um certo elitismo sublinhado pela clientela snob e pelos preços elevados. Talvez por isso aí fizeram sede entre outros Oscar Wilde, Jean Giradoux, Le Corbusier e Raimond Queneau, este primeiro beneficiário do prémio literário Deux Magots criado em 1933.
A sua clientela era tão distinta que não a podíamos imaginar noutro sitio que não este e sobretudo não a podíamos imaginar no Flore.




A brasserie Lipp
O Café politico por excelência

Isolado e solitário no lado oposto do boulevard de Saint-Germain, encontrava-se a famosa brasserie Lipp usada já desde os anos 20 por André Gide que “ lisait, frileusement enveloppé dans un coin”7
A brasserie deve o seu nome a um refugiado da Alsácia, M Lippmann e sempre foi o lugar de eleição dos deputados e intelectuais para as discussões politicas.
É famosa a discussão entre os partidários da Action Française e Léon Blum em 1935. Nessa noite gritou-se “à mort Léon Blum” e foi só a intervenção de Robert Desnos e do pintor Picabia que permitiu a saída de Blum ileso.6


Le Tabou
O fenómeno da cultura das caves

O sucesso e a publicidade da concentração de tantos e tão ilustres personagens originou um fenómeno perverso de exposição mediática. As pessoas procuravam Saint-Germain para ver os intelectuais famosos, os escritores da moda, enfim, todo o meio artístico pela primeira vez concentrado e exposto num só lugar. E quando o publico invadiu Saint-Germain já muitos tinham fugido e refugiado nas caves.
A festa continuava fora de horas em locais de difícil acesso como em um acto de conquista do território.
O numero de bistrots também aumentou e importa referir outros como o Bar-Vert,o Montana e o bar da Pont-Royal onde Sartre acabou por se refugiar.
E aos poucos aparecia uma outra geração que toava conta do quartier durante a noite como se de lobos se tratassem.
Juliette Gréco com os seus longos cabelos escuros, de calças e camisola negra criou uma moda. O Tabou foi então adoptado pois era o único lugar que ficava aberto até de ao alvorecer e o nome condizia com o ambiente de subcultura latente.
Foi o apogeu de Saint-Germain e o inicio do fenómeno da caves. Um outra cave, Le Lorientais, era palco para noites de renovação do jazz tipo New-Orleans sob a batuta do clarinete de Claude Lutter. Era o nascimento do be-bop.
O Tabou contrapõe e chama Boris Vian com seu trompete. Os tempos áureos tinham começado.
Entretanto o escândalo está preste a rebentar com a famosa reportagem do semanário Samedi-Soir com as fotos Juliette Gréco em calças e toda de negro e Roger Vadim sem gravata e despenteado. O titulo da reportagem era indiciador do sensacionalismo da reportagem:
“ Comment vivent les troglodytes à Saint-Germain-des-Prés”
Trogloditas era assim o ultimo avatar dos existencialistas. Era o começo de uma autentica febre jornalística mundial que demorou alguns anos a arrefecer e que transformou uma geração de intelectuais e artistas nos primeiros ícones mundiais e sobretudo em exemplos e modelos de toda uma juventude ocidental.

O Tabou é invadido por curiosos e as hostes passam para a Rue Saint-Benoit para o Club Saint-Germain onde mais uma vez Boris Vian e Juliette Gréco ( a musa dos existencialistas) faziam de mestres de cerimónias. São as famosas noites temáticas que iniciaram modas que ainda hoje se mantêm um pouco por todo o lado.
As caves proliferam então por todo Paris mas agora mais num fenómeno de moda do que de cultura popular.

Conclusão

Pretendeu este trabalho fazer uma abordagem sumária dos intercâmbios, das ligações e das partilhas que a cidade de Paris permitiu e de que forma Paris é em si mesmo condicionadora e potencializadora da produção e da criação artística.
Paris assume-se assim como verdadeira ponte entre culturas, gerações, movimentos e personalidades.
Os diálogos artístico-culturais que a cidade de Paris testemunhou foram imensos, em diversas épocas e diversos lugares particulares da cidade.
Como é evidente com este objectivo tão abrangente corremos sempre o risco de esquecer personalidades, épocas ou movimentos. O critério seguido foi pessoal e assumido em termos espácio-temporais.

O reflexo transmitido neste trabalho é pequeno perante a enormidade da tarefa e do sujeito de análise.


Referencias Bibliográficas:

1 WERBER, Bernard (2000) : “L´Encyclopédie du savoir relatif et absolu”, Paris, Albin Michel
2 PAYNE,MICHAEL (1996) : “A Dictionary of Cultural and Critical Theory”, Oxford, Blackwell Publishers
3 VILLA-MATAS, Enrique (2003) : “Paris nunca se acaba”. Lisboa .Editorial Teorema.
4 CHANDA, TIRTHANKAR s\d: entrevista em www.ambafrance.org
5 HEMINGWAY, ERNEST : « Paris é uma festa », Lisboa, Livros do Brasil
6 VIAN, BORIS ( 1974) : « Manuel de Saint-Germain-des-Prés », Paris, Pauvert
7 PAYEN APPENZELLER, PASCAL ET FRANCE (1980): ”Promenons-nous dans Paris”, Éditions Princesse, Paris
8 CARTER, ( 2007) : http://carter-carter-carter.blogspot.com/