terça-feira, 2 de outubro de 2007

Heródoto e Kapuscinski

Heródoto
foi um historiador e viajante grego, continuador de Hecateu de Mileto, nascido no sec.V aC (485-420 aC) em Halicarnasso, hoje Bodrum na Turquia.

Ryszard Kapuscinski
nasceu em 1932 na cidade polaca de Pinsk, situada hoje na Bielorrússia. Licenciado em História, a partir dos anos 50 foi jornalista correspondente na Ásia e na África. Faleceu em 2007.

Kapuscinski e Heródoto

ou de como de viagens também se faz a literatura

A nossa proposta de reflexão e leitura tem por base a referência primeira da chamada "literatura de viagens" designação nada pacífica para um género literário muito particular. Esta referência tem um nome, Heródoto, o historiador grego que conseguiu reunir num mesmo texto, história, viagens e literatura."Histórias" de Heródoto é antes de mais a grande reportagem de uma vida de observações e de viagem. Heródoto foi também considerado o pai da História ao ter sido o primeiro a registar e gravar o conhecimento do passado enquanto explicação para o presente observado.Durante quase toda a sua vida, num perpétuo viajar, Heródoto tudo anotou e registou. Essas notas, de extrema importância histórica e antropológica, foram registadas sempre no interesse de um futuro possível público. Começa assim o primeiro volume de "Histórias"

"Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso, para que os feitos dos homens não se desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes e maravilhosas empresas, realizadas quer pelos Helenos quer pelos Bárbaros; e sobretudo por que entraram em guerra uns com os outros. »

Kapuscinski relata de uma maneira clara e muito feliz, todos os acontecimentos que testemunhou enquanto jornalista correspondente em África e na Ásia durante a segunda metade do sec.XX, época de grandes modificações sociais e políticas que iriam moldar e condicionar o mundo transformando-o naquilo que é hoje.As associações dos acontecimentos que marcaram a História recente com o percurso de viagem de Heródoto no mundo conhecido da antiguidade, fazem do relato de Kapuscinski um guia perfeito para quem se aventura " em viajar, conhecer e compreender".Estes relatos cruzados de lugares, acontecimentos e tempos transformam-se num verdadeiro hino à viagem enquanto acto multiplicador das referências culturais numa busca constante de (o) um conhecimento que nos engrandece e amadurece.Viajar é ouvir e ver, transpor e passar a fronteira física e psicológica. Para isso tentamos sempre nos abstrair do nosso sistema de crenças que por vezes nos cega.

" ..Queria só atravessar a fronteira algures, não importava onde, porque o que contava não era um objectivo final, nem um fim, nem um destino, mas sim o acto místico e transcendental de atravessar a fronteira."

À partida o mundo da antiguidade de Heródoto poderá parecer muito distante e diferente do mundo moderno que despertava durante as viagens de Kapuscinski e radicalmente diferente da nossa aldeia global contemporânea.Os dilemas e as dificuldades de compreensão perante novos mundo e novas realidades, novos povos, culturas e acontecimentos foram os mesmos para Heródoto e Kapuscinski e são definitivamente os nossos, enquanto viajantes e empreendedores de uma compreensão possível e difícil para o mundo actual, plural e tão diferente. Mas antes de mais teremos de lutar com a nossa letárgica inércia.

"…conhecer o mundo implica um esforço desgastante e uma dedicação completa. A maioria das pessoas desenvolve em si capacidades contrárias, nomeadamente a capacidade de olhar sem ver, ou ouvir sem prestar atenção."

O livro de Kapuscinski é mais do que um guia de viagem ou um livro de História; é um livro que nos estimula a questionar, orientando-nos na extraordinária aventura do conhecimento ou seja, da vida.

Heródoto foi o primeiro a registar o passado, facto que hoje nos parece desnecessário perante a avalanche de informação e registos existentes actualmente. Mas enquanto os registos se encadeiam numa panóplia de suportes nunca antes vista na história humana, a memória colectiva dilui-se perante tanta informação e a memória individual desvanece-se pela velocidade de tanta informação.


Kapuscinski, Ryszard: "Andanças com Heródoto",http://campo-letras.pt , 2007



Heródoto: "Histórias", volume 1-9,Colecção Clássicos Gregos e Latinos www.edicoes70.pt ,1997-2002


Ile de Gorée, Dakar,Senegal

"O negro é belo"

"Do cais de Dacar até à ilha de Goreia o barco não demora nem meia hora. Da popa vimos como a cidade, que durante algum tempo estava a abanar nas ondas mexidas pela hélice do barco, se torna cada vez mais pequena, até se transformar numa linha de pedra que se estende ao longo do horizonte. Naquele momento o barco volta-se de popa para a ilha, e com o barulho do motor ouve-se a massa de ferro raspar o betão do cais."

"....Aquela muralha e toda a ilha da Goreia têm a pior fama de criminosas. Durante duzentos anos, ou mais, a ilha foi prisão, campo de concentração e entreposto de escravos africanos para outro hemisfério, para as duas Américas e para o Caribe. Os diferentes cálculos estimam que, naquele tempo, foram enviados da Goreia cerca de vinte milhões de jovens, homens e mulheres. Estes números são descomunais para aqueles tempos! A captura e o envio de pessoas em massa despovoaram a África.

O continente esvaziou-se, cobriu-se de bosque e de mato."


(Kapuscinski, Ryszard: "Andanças com Heródoto",www.campo-letras.pt, 2007 , p. 197 e 202)

A TAP, Air Portugal voa diariamente para Dakar








segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Voltaire

« Il est impossible, dans notre malheureux globe, que les hommes vivant en société ne soient pas divisés en deux classes, l´une d´oppresseurs, l´autre d´opprimés ; et ces deux se subdivisent en mille, et ces mille ont encore des nuances différentes»

Égalité, dans " Dictionnaire Philosophique"


A vida e obra de Voltaire são a referência definitiva maior do século das "luzes", o sec. XVIII. A seu tempo famoso como poeta e criador de tragédias, hoje é recordado e estudado por seus escritos filosóficos em que se destacam os seus contos, as "lettres philosophiques" e o "dictionaire philosophique"

Voltaire
Modernidade e "Engagement"

Voltaire foi um pensador e intelectual e o verdadeiro precursor da Revolução Francesa.
Ecléctico e elitista, viveu a maior parte da sua vida na companhia dos grandes e poderosos.
A sua clareza e vivacidade de espírito aliada a uma energia imensa e a uma capacidade de trabalho incomum resultaram numa produção intelectual profícua.
Simultaneamente, a sua vida foi um repositório de questões, querelas e conflitos que lhe causaram bastantes problemas ao longo de toda a sua vida, e que lhe custaram uma estadia na Bastilha.
Foi um verdadeiro mito da sua época. Símbolo da revolução latente,foi o seu anticlericalismo e a sua coragem para enfrentar os poderosos que lhe deram grande notoriedade popular.
Mais do Pensador e intelectual, Voltaire considerava-se um verdadeiro poeta. Durante muito tempo as suas peças teatrais fizeram parte do reportório da "Comédie Française" mas acabaram por cair num esquecimento, imposto quer pelo tempo quer pela normal evolução dramática. Pelo movimento contrário, esse mesmo tempo elevou a sua escrita filosófica a um nível de impressionante actualidade e importância que não possuía a seu tempo.
Muita da sua inspiração e orientação filosófica foi buscá-la à doutrina de John Locke.
Voltaire tornou-se assim liberalista por opção e positivista por excelência; reafirma e defende os direitos naturais de todos os indivíduos mas esclarece que é a experiência de vida a base principal para a construção do caminho e escolhas do indivíduo.
É através destes conceitos positivistas que Voltaire constrói os alicerces do conceito de liberdade e de cidadão, símbolos maiores de urbanidade e modernidade.
Além destes conceitos base, Voltaire definiu pela primeira vez o princípio do controlo do destino pelos indivíduos, através do conhecimento e das artes.

« L´univers m´embarrasse, et je ne puis songer
Que cette horloge existe et n´ait point d´horloger»

Deísta militante Voltaire acreditava num deus\ entidade reguladora e organizadora por defeito bom\boa numa espécie de ordem, mais próxima de conceitos científicos do que religiosos.
Voltaire falava de um "Geómetra Eterno" e de uma ordem estabelecida.
Não serão religião e ciência duas explicações para uma mesma realidade?
A actualidade invade a obra de Voltaire remetendo as questões de ontem para hoje e vice-versa.
Combateu o fanatismo religioso e a igreja católica, dominante em França. Lutou também contra a intolerância e a injustiça latente da sociedade. Esta luta assumiu características de fobia, também ela intolerante e que o cegou em algumas análises sociais e filosóficas.
Voltaire fez uma análise e crítica do Corão que mantém uma actualidade impressionante e que hoje nenhum intelectual teria a lucidez e coragem de escrever.
No entanto e apesar das criticas latentes às religiões, considerou o monoteísmo uma evolução e um beneficio para o pensamento e conhecimento humano, por possibilitar e facilitar a explicação da possível ordem universal.
Uma das suas armas de crítica era o humor e através da sua escrita que dominava em pleno, caricaturou muitas das figuras políticas e intelectuais do seu tempo. A sua querela com Jean- Jacques Rousseau sobre o bom selvagem foi sublime pela argumentação evocada e pelos exemplos referidos.

« J´ai reçu, monsieur, votre nouveau livre contre le genre humain, je vous en remercie (…) On a jamais employé tant d´esprit à vouloir nous rendre bêtes ; il prend envie de marcher á quatre pattes quand on lit votre ouvrage.Cependant, comme il y a plus de soixante ans que j´ai perdu l´habitude, je sens malheureusement qu´il m´est impossible de la reprendre et laisse cette allure naturelle à ceux qui en sont plus dignes que vous et moi (..)»

“ Lettre à Rousseau, 30 août 1755”

Podemos considerar o seu pensamento e acção como um Humanismo militante.
"Cri de guerre: raison,tolerance et humanité"
Voltaire terá sido o primeiro dos intelectuais engagés que iriam marcar todo o pensamento francês e ocidental nos duzentos anos a seguir.Envolveu-se em vários affaires onde o seu senso de justiça o levou a tomadas de posição firmes e por vezes corajosas.


« Je ne suis pas d´accord avec ce que vous dites, mais je me battrai jusqu´á la mort pour que vous ayez le droit de le dire»

Devido à sua personalidade controversa e polémica, Voltaire granjeou muitos inimigos e foi envolvido em inúmeras polémicas. Foi inclusive acusado de estar envolvido no comércio triangular esclavagista, onde teria obtido grandes rendimentos.
Além disso, como opinava sobre todos os assuntos da época, científicos, filosóficos e mundanos, tomava por vezes posições e assumia julgamentos que o tempo se encarregaria de transformar em erros crassos. As mais famosas são as suas dissertações sobre a hipótese de dilúvio e sobre a firme oposição à inoculação do agente da varíola.
Voltaire foi assim o primeiro intelectual da modernidade.